Mensagens

entrevista a HERBERTO HELDER

Entrevista a Herberto Hélder (na foto) por Fernando Ribeiro de Mello, publicada do Jornal de Letras e Artes n.º 139, de 17 de Maio de 1964. «Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim!» - Diz-nos desassombradamente Herberto Helder Herberto Helder, cujo último livro, «Electronicolírica», veio levantar sérios problemas em volta do conceito que a sua poética parecia anunciar acaba de publicar em conjunto com António Aragão e vários o colaboradores o caderno «Poesia Experimental» que vem confirmar a viragem operada na sua obra. Fernando Ribeiro de Mello/ Jornal de Letras e Artes – Como considera criticamente a evolução da sua produção poética, desde «O Amor em Visita» ao recentemente publicado «Electronicolírica»? Herberto Helder – Em certo sentido (que também prezo), não houve evolução. Esse sentido é o de fidelidade às bases da minha experiência – a descoberta do modo – que, fundamentalmente, se cumpriu na infância. A experiência exterior poderá ser consider...

Manuel António Pina

Documentário Manuel António Pina from Terra Líquida Filmes on Vimeo .

Entrevista a João Cabral de Melo Neto

Abaixo, alguns trechos de uma entrevista com João Cabral de Melo Neto, concedida em 1986. O poeta dispensa maiores apresentações. - Por que o senhor tem tanta prevenção contra a subjetividade? Há um conceito mais ou menos generalizado de que a poesia é uma manifestação extremada da subjetividade... João Cabral : "Há uma diferença. Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçã, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer "eu estou triste". Ele ...

o jogo em que andamos

Se me dessem a escolher, escolheria esta saúde de saber que estamos doentes, esta felicidade de andarmos tão infelizes. Se me dessem a escolher, escolheria esta inocência de não ser um inocente, esta pureza em que passo por impuro. Se me dessem a escolher, escolheria este amor com que odeio, esta esperança que come pães desesperados. Aqui acontece, senhores, que jogo com a morte. juan gelman versão de luís filipe parrado

CHOREI COM OS CÃES

Conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua cheia. De repente, um vulto na minha rota. Não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor. Saí do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano, lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho: - É pá, mataste um cão sem dono. A lua cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para dentro do carro. Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz. Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. O funeral foi marcado para a meia noite. Todos compareceram. Solidários, quatro amigos mais corajosos ofereceram-se para cavar a sepultura, num canto da horta, onde espontâneas medravam hortelãs. Todos reunidos no silêncio. Um uivo comovido despoletou um choro colectivo. Só o Dique não chorou. Trazia na boca uma papoila que largou em cima da sepultura. Eufrázio Filipe in  http://mararavel.blogspot.pt/

dez palmos acima da insignificância

vivo na cave do universo a contar os buracos da lua e as migalhas que caem da mesa nua os que por mim passam fingem que não me vêem vasculhando os restos e o rasto das nuvens vivo no estrume do subsolo meio caminho escavado entre as artérias da penúria e o sangue da usura os que a mim se chegam com falas mansas e dentes como lanças atiram-me que sou um fardo um espinho cravado nos luminosos astros ainda assim eu ardo dez palmos acima da insignificância v. Solteiro in" a arquitectura das palavras "

A Dimitris Christoulas, em Atenas, Abril de 2012

de súbito insustentável na praça Syntagma a relva surgiu vermelha junto do tronco impassível da árvore abandonada e toda a Grécia estremece com o espanto de um grito um grito só e aflito que cruzou a Terra toda como se fora pequena como se valesse a pena despertar ainda a aurora e jaz num corpo vazio que nos perturba a cidade foi cada passo contado que o levou ao destino foi a certeza da Vida que lhe aconselhou a morte e um tiro redentor que suas mãos libertaram agitaram o torpor das consciências paradas ali foi digno Dimitris contra os tiranos da vida a provar-nos às mãos-cheias que somos senhores de tudo e só nós somos os donos da hora da liberdade quando a centelha da honra se acende dentro de um peito vestido de humanidade legou uma nota breve bordada a sangue e a revolta por não mais o merecerem os tiranos que nomeia mas o olhar derradeiro abrange este mundo inteiro adivinha-se fraterno militante solidário numa paz feita na guerra que vestiu de dig...

SEGREDO

Lá, na última das celas nódoa negra de açoites, não há dias, não há noites porque as as noites têm estrelas. Lá, só na sombra que dói. Sombra e brancura de um osso que o preso remói, remói no fundo do seu poço. Lá, quando o vierem buscar amanhã, depois ou logo, terá na alma mais um fogo, mais uma chama no olhar. Luís Veiga Leitão (1912-1987) In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa"

O MEU PAÍS FICA AQUI

 Reza a Deus  quando está só    E a Maria na multidão  O  meu país fica aqui  È velho como uma  espada  Pequeno como  altar  de troca       O  meu  país  serve a demência Com paciência  bovina Fica  aqui  ao pé  do mar Chora  com um trevo  na mão  A  busca  da  sorte   A  ciência  da escuridão   O  meu pais fica aqui  Onde  o vizinho  morto  Dá  dois rostos  de  televisão   José Ribeiro Marto in http://vaandando.blogspot.com/

Retornos

Voltou. Não disse nada. Parecia muito perturbado. Deitou sem tirar a roupa. Escondeu se debaixo do cobertor, as pernas dobradas. Tem quarenta anos, mas não neste momento. Está vivo - mas como no ventre materno atrás de sete peles, na escuridão que o defende. Amanhã dá palestra sobre homeostasis na cosmonáutica metagalática. Por enquanto se encolhe, adormece. Os filhos da época Somos os filhos da época, e a época é política. Todas as coisas - minhas, tuas, nossas, coisas de cada dia, de cada noite são coisas políticas. Queiras ou não queiras, teus genes têm um passado político, tua pele, um matiz político, teus olhos, um brilho político. O que dizes tem ressonância, o que calas tem peso de uma forma ou outra - político. Mesmo caminhando contra o vento dos passos políticos sobre solo político. Poemas apolíticos também são políticos, e lá em cima a lua já não dá luar. Ser ou não ser: eis a questão. Oh, querida, que questão mal parida. A questão política....

A propósito de "A Sombra da Romã" - um Inédito em "CASAL DAS LETRAS"

Inédito O TORMENTO DA NEVE Numa cadeira de rodas que não rodava Vi uma mulher coroada por uma montanha de neve. Na relva do tapete uma criança de joelhos Com um pássaro morto no centro da cabeça. É ela que escreve esta página suja de terra Com pancadas vivas de violência de sangue e uma gazela. Não sei se Deus estava presente ou chorava Mas as janelas sem estrelas e esta beleza sem nexo Gritaram ouro cortado entre os dedos e o sexo Cuspiram enxofre para dentro do poema. Maria Azenha in    http://www.casaldasletras.com/convidados.html e  http://www.casaldasletras.com/index.html

Tenho uma folha branca

Imagem
Tenho uma folha branca e limpa à minha espera: mudo convite tenho uma cama branca e limpa à minha espera: mudo convite tenho uma vida branca e limpa à minha espera. Ana Cristina César nasceu em 2 de Junho de 1952, no Rio de Janeiro. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.

AOS QUE VIRÃO DEPOIS DE NÓS

Bertolt Brecht

Manifiesto

Manifiesto POESÍA ÚTIL Cansados, aburridos, decepcionados de la poesía que se escribe en la España de fin de siglo XX (con el justo respeto a las contadas excepciones redentoras), por instinto de resurrección poética decimos No. No queremos una poesía domada por las tendencias dominantes. Queremos una poesía en estado salvaje, libre. No queremos una poesía aséptica, de sonsonete, mimética. No queremos poemas de tubo de ensayo, ni poemas lúdicos que camuflan la trampa. No queremos una poesía profesoral escrita por doctos iniciados para los elegidos de la secta. Arremetemos contra la abulia, contra el sopor, contra la palabrería, contra el ombliguismo lingüístico, en un mundo que se descompone por la carcoma de su incapacidad para pensar y repeler la agresión de la Gran Anestesia. Rechazamos la poesía elaborada para obligar al lector a estudiar el diccionario, la poesía personalista de valor terapéutico exclusivo para su autor, la poesía de fanatismo culturalista y esteticista, la...

o último poema

Assim eu quereria o meu último poema Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. Manuel Bandeira

escreve

a santa ceia

A mesa sempre farta e a casa muito cheia. O eterno ritual da santa ceia, regado de luxúria e de prazer. E eu, sem trono e sem coroa de rainha, Reinando, absoluta, na cozinha. Enquanto eles se matam de comer. Kátia Drummond

o meu verdadeiro espírito

O meu verdadeiro espírito, qual é? Não te posso dizer. Vê apenas a neve e o orvalho das montanhas. Dogen Zenji (1231-1253)

Portugal

Portugal Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse Quase chego a pensar que é tudo mentira, que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente Portugal Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional (que os meus egrégios avós me perdoem) Ontem estive a jogar poker com o velho do Restelo Anda na consulta externa do Júlio de Matos Deram-lhe uns eletrochoques e está a recuperar àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas Portugal Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse da...

ENTRE CAIXÃO E BERÇO

Mãe, quando, um dia, eu voltar de vez, fico aqui contigo para sempre. Quando abraçar a velha soleira e beijar as santas árvores de antigamente e, cansado, lágrimas tremendo, em teus olhos olhar. Espera, então, por mim, que uma noite virei. Será Outono, sei, luz púrpura ziguezagueia, fulva luz nocturna. A grande porta de ferro, troando, há-de fechar-se de tal modo, Que a velha casa ,fria, tremerá de medo. Mas tu não receies, vem ao meu encontro, suavemente, por mais medonho e branco que eu seja, aperta-me nos teus braços, não busques o coração, que inunda o sangue feio e preto, olha só para os meus olhos dormentes e baços, acaricia-me a cabeça, em silêncio. Eu nem sequer te contarei como vivi entre beijos ulcerados , na noite clara, olhar-te-ei somente, como no passado, então compreenderei que tu és o início e tu és o fim. Mudo,deitar-me-ei na grande cama branca, eu, velho bebé que falar não sabe, e do coração aos lábios sobe, vibrante, a ida melodia da ...

a maré do meu amor

A maré do meu amor Subiu tão alto; Deixa-me fluir sobre ti. Fecha os olhos por um momento E pode ser que todos os teus medos e fantasias Acabem. Se isso acontecesse Deus tornar-se-ia numa criança em teus braços. E depois, Terias que cuidar de toda a criação.

DE PROFUNDIS AMAMUS (mário cesariny de vasconcelos)

Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perder todos os teus eléctricos os meus estavam perdidos por natureza própria Andámos dez quilómetros a pé ninguém nos viu passar excepto claro os porteiros é da natureza das coisas ser-se visto pelos porteiros Olha como só tu sabes olhar a rua os costumes O Público o vinco das tuas calças está cheio de frio e há quatro mil pessoas interessadas nisso Não faz mal abracem-me os teus olhos de extremo a extremo azuis vai ser assim durante muito tempo decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes não te importes muito nós só temos a ver com o presente perfeito corsários de olhos de gato intransponível maravilhados maravilhosos únicos nem pretérito nem futuro tem o estranho verbo nosso mário cesariny de vasconcelos

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo pernas ambulâncias e o luxo blindado de alguns automóveis Vai ter olhos onde ninguém o veja mãozinhas cautelosas enredos quase inocentes ouvidos não só nas paredes mas também no chão no teto no murmúrio dos esgotos e talvez até (cautela!) ouvidos nos teus ouvidos O medo vai ter tudo fantasmas na ópera sessões contínuas de espiritismo milagres cortejos frases corajosas meninas exemplares seguras casas de penhor maliciosas casas de passe conferências várias congressos muitos ótimos empregos poemas originais e poemas como este projetos altamente porcos heróis (o medo vai ter heróis!) costureiras reais e irreais operários (assim assim) escriturários (muitos) intelectuais (o que se sabe) a tua voz talvez talvez a minha com a certeza a deles Vai ter capitais países suspeitas como toda a gente muitíssimos amigos beijos namorados esverdeados amantes silenciosos ardentes e angustiados Ah o medo vai ter tudo tudo (Penso...

Poeta

Está a trabalhar agora, numa sala que não é diferente desta, onde escrevo, ou aquela em que lês. A mesa está coberta com papéis. A luz do candeeiro seria suavizada por um abajur, onde a sua crueza única se pudesse diluir, mas não é; ela tirou-o. Os seus poemas? Nunca os perceberei bem, embora sejam aqueles de que mais preciso. Nem o próprio alfabeto que ela usa eu consigo decifrar. A sua cadeira - imaginemos se é de pele ou lona, de vinil ou verga. Deixemos que fique com uma cadeira, o candeeiro sem abajur, a mesa. Que um ou dois daqueles que ama estejam no quarto ao lado. Porta fechada e de boa saúde os que dormem. Dêmos-lhe tempo, e silêncio, papel que chegue para cometer erros e continuar. Jane Hirshfield tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho  http://www.triplov.org/novaserie.revista/numero_15/jane_hirshfield/index.html

poesia dita por António Cardoso Pinto

Fernando Pinto do Amaral - Limiar - poema dito por António Cardoso Pinto by manuscritosdigitais em manuscritos digitais

apocalipse

virei reiteradamente como as estações das flores virei como o animal ou o corsário semear o vento que vos lembre a morte (e vós que vos fechais em vossa vã imagem e vossos trapos, vós que adorais Deus olhando-vos ao espelho, tremei de vosso assento de carne fustigada há muito que Ele deixou às vossas portas as sandálias) virei na eclosão das vagas envolto em tudo quanto a vida trabalha virei no desregramento do vento e em vosso pasmo assim eu cante o vinho que sobe o rio às costas dos vindimadores virei no circuito da palavra que se quebra como um ramo de água e deixareis as armas para falar sem ritos morre-se quando de nós ficam ficaram restos que ninguém recolhe virei no som de Stockhausen e quantos desconstruíram a harmonia e o mundo antigo para que habiteis o tempo como quem habita as fontes cheios de barulhos por dentro como o vinho à cabeça das vindimadeiras in: http://triplov.com/semas/2010/Nome/index.htm

Meninas

 (a Paula Rego)  Saem da treva  as amas  sentam-se em bancos pequenos  bem juntinhos  à lareira  abrem os cestos  de fruta que são caixas  de costura  linhas de côr  e agulhas  vão bordar um pano  branco  saltam faúlhas  vermelhas ouve-se o grito  rasgado  foge o gato  da tesoura  lá no fundo uma menina  com o seu avental de pranto  Outonais (poemas 2005-2010), Yvette K. Centeno in http://www.poemsfromtheportuguese.org/121Yvette_KCen.asp

o acto de ler

O acto de ler reabre feridas. Nos livros em que isso acontece, com frequência, poderia ao menos haver um aviso na capa; assim como se faz com as carteiras de tabaco, embora se saiba que poucos deixam de fumar por isso. Teresa Jardim in: Resumo, a poesia em 2011, Ed. Assírio e Alvim/FNAC,  Lisboa, Março 2011

ESTE SERÁ MEU CUMPRIMENTO

acabaram meus cigarros dinheiro tenho pouco nem uma pessoa influente de poder conheço não levarei ninguém a qualquer promoção portanto, não leia este verso este poema como um meio, por ele – que sou eu – não chegará a nenhum futuro brilhante nem a ocupar um cargo de bom salário ou daqueles de excelentes aparências. não tenho nem como trocar favores não tenho nada que lhe possa interessar se for por isso nem mesmo um minuto vale perder comigo. não precisa de discrição, afasta-se rápido finja em qualquer lugar que passo despercebido. muitos conhecidos pensam em me querer - no mínimo do que tenho. mas não tenho nada, nem o mínimo nem mesmo um verso rimado não tenho o que oferecer pode pensar que me ver é avistar um rosto de dia de semana um rosto de olhar cansado o trajeto de uma terça-feira sim, sou um dia de semana arrastado sem uma ninharia. melhor, então, é me deixar jogado num canto prometo que a partir de hoje logo que alguém falar comigo antes de to...

Cai uma folha no poente

Cai uma folha no poente destes dias O que era nítido torna-se difuso Babel renasce em cinzas de um deserto próprio E o vento busca em vão uma harmonia A solidão é em mim um oásis às avessas Lutando em vão contra a miragem certa Amélia Pais http://barcosflores.blogspot.com/

José Saramago

O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma coisa fique. Não é imortalidade… isso seria um disparate. Trata-se de um reconhecimento por algum tempo mais. In José Saramago nas Suas Palavras

Agostinho da Silva

BREVES NOTAS

Ontem queimei um lençol, com o ferro, fiz isso sozinha, gravei-lhe um colorido triângulo torrado graças à televisão. Tenho sempre a televisão pequena na cozinha enquanto passo a ferro: uma criança negra numa guerra mamava ao peito de sua mãe morta. Senti que tinha engolido uma bola de pêlo. Não irei esquecer isso: o leite gotejou para dentro do meu peito. Miren AGgur Meabe in http://poesiailimitada.blogspot.com/2011/02/miren-agur-meabe.html

O sétimo selo - diálogo de Antonius Block com a Morte

Ernesto de Melo e Castro

Por Favor, me Chame pelos Meus Verdadeiros Nomes

Não diga que partirei amanhã pois eu chego todos os dias. Olhe profundamente; eu chego em cada segundo para ser um botão num galho da primavera, para ser um pequeno passarinho, com asas ainda frágeis aprendendo a cantar em meu novo ninho, para ser uma lagarta no coração da flor, para ser uma jóia escondendo-se numa pedra. Eu ainda chego, para rir e para chorar, para ter medo e ter esperança, o ritmo do meu coração é o nascimento e a morte de tudo o que está vivo. Eu sou a efemérida metamorfoseando na superfície do rio, eu sou o pássaro que, quando chega a primavera, aparece a tempo de comer a efeméride. Eu sou o sapo nadando feliz da vida na água clara do lago, e sou a cobra, que, aproximando-se em silêncio, alimenta-se do sapo. Eu sou a criança em Uganda, de pele e osso, de pernas finas como bambu, eu sou o mercador de armas, vendendo armas mortíferas para Uganda. Eu sou a garota de doze anos de idade, refugiada dentro de um pequeno bote, que atira-...

Terra de névoa

No Inverno a minha amada está com os bichos na mata. Que eu tenho de voltar antes do dia, a raposa sabe-o e ri. Tremem tanto estas nuvens! E na minha gola de neve cai uma cama de gelo quebrado. No Inverno a minha amada é uma árvore entre as árvores e convida aos belos ramos os corvos abandonados da sorte. Sabe que o vento, ao anoitecer, lhe levanta o vestido hirto de noite e geada, e me leva para casa. No Inverno a minha amada Vai silenciosa com os peixes. Servindo as águas, movidas adentro pelo o fio das barbatanas, eu fico na margem e vejo-a mergulhar e revirar, enquanto os gelos não me expulsam. E de novo, ao embate do grito da ave que me ampara com a asa, desabo num campo aberto: a amada depena as galinhas e atira-me uma clavícula branca. Ponho-a ao pescoço e afasto-me por entre a penugem amarga. Infiel é a minha amada, eu sei que às vezes flutua de saltos altos até à cidade, beija nos bares com a palhinha os copos profundamente na boca e...

pastelaria

Marco D'Almeida no programa Voz Pastelaria Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio Afinal o que importa não é ser novo e galante - ele há tanta maneira de compor uma estante Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício Não é verdade rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo! Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que um pássaro sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar.  António Cícero

Poesia budista

Prefiero poemas que son pequeñas visiones budistas momentos de conciencia textos, que suben rápido a la mente saco la puntuación y llego al Nirvana in " El cuarto oscuro y otros poemas" Robert Gurney

HOTEL TOFFOLO

E vieram dizer-nos que não havia jantar. Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos. Como se a cidade não servisse o seu pão de nuvens. Não, hoteleiro, nosso repasto é interior, e só pretendemos a mesa. Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras. Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia. Carlos Drummond de Andrade (Brasil, 1902 – 1987) Claro Enigma (Record, 2006)

as crianças de Israel

As crianças de Israel Brincam às horas do ágape Sob o incêndio da alegria Maria Costa in " ao fundo do jardim" http://aofundodojardim.blogspot.com/

LAMENTO PELA MINHA CABANA DESTRUÍDA PELO VENTO DE OUTONO – Tu Fu

No oitavo mês, em pleno outono, o vento ruge, colérico, E leva num turbilhão as três camadas de palha da minha cabana. O colmo voa, atravessa o rio, espalha-se pela ribanceira. O que voa alto fica suspenso nos ramos da grande floresta, o que voa baixo cai vai girando cair nas ravinas. As crianças da aldeia do sul riem-se da fraqueza da minha velhice: têm a audácia de me roubar às claras: abertamente arrancam o colmo e fogem por entre os bambus. Grito até ficar com a boca seca: não adianta nada. Volto para casa, suspiro, apoiado ao meu bastão. O vento cessa bruscamente, mas as nuvens continuam negras, o céu de outono é silencioso e escurece com o vir da tarde. Os lençóis e cobertas são velhos, frios como ferro, as crianças, sensíveis, com repugnância, rasgaram-nos a pontapés. Todos os leitos do aposento são úmidos: não há um lugar seco, sinto cãibras nas pernas, não as poso entender. Aflijo-me, lamento-me, durmo um pouco, a noite é longa e úmida, como a poderei passa...

exercício

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio, e vejo saírem de dentro dele as palavras que ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco com o álcool da memória, para que se transformem num licor de remorso; outras, guardo-as na cabeça para as dizer, um dia, a quem me perguntou o que significavam. Mas o silêncio de onde as palavras saíram volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro. Nuno Júdice

Grandes Portugueses- Fernando Pessoa

Serguei Iesseênin (Rússia, 1895-1925)

A Anatoli Marienhof Até logo, até logo, meu companheiro, Guardo-te no meu peito e te asseguro: O nosso afastamento passageiro É sinal de um encontro no futuro. Adeus, amigo, sem mãos nem palavras. Não faças um sobrolho pensativo. Se morrer, nesta vida, não é novo, Tampouco há novidade em estar vivo. Iessiênin Tradução do poema . Augusto de Campos gentilmente enviado por Amélia Pais

entre-vistas - Alberto Manguel

«ESTAMOS A DESTRUIR O VALOR DO ACTO INTELECTUAL» Ensaísta, escritor de ficção - mas talvez, acima de tudo, leitor. Instalou a sua magnífica biblioteca pessoal num presbitério medieval francês, onde reside. De passagem por Lisboa, Alberto Manguel falou com o Ípsilon. Ana Gerschenfeld 02.07.2010 “Os livros e a leitura sempre nortearam - e ainda norteiam - a vida de Alberto Manguel. Aprendeu a ler por volta dos três anos e nunca mais parou. Quan­do era adolescente, leu em voz alta, durante vários anos, para Jorge Luís Borges, que tinha ficado cego. Mais tarde, começou a escrever sobre li­vros, leituras e leitores - e o seu "Uma História da Leitura" (publicado em Portugal em 1999 pela Presença) tor­nou-se um best-seller mundial. Nasceu em Buenos Aires em 1948, criou-se em Israel, fez o liceu na Ar­gentina, viveu em sítios longínquos como Taiti. Nos anos 1980 mudou-se para Toronto, no Canadá, e tornou-se cidadão canadiano. De há 10 anos pa­ra cá, vive no Sul de Fr...

O DESTINO DAS ROUPAS

No cesto da roupa suja de qualquer quarto do mundo uma mãe saberia reconhecê-las. Suportaram as investidas do tempo, as agressões do lixo, os estragos do primeiro amor os rasgos da primeira contenda, as nódoas da fruta, os espinhos da rosa, a rosa do amor, o vómito amargo de sábado à noite, o sangue do amigo no carro desfeito. © 2006, Rui Lage De: Revólver Ed.Quasi, V. N. Famalicão, 2006 ISBN: 989-552-221-5

o cúmplice

Crucificam-me e eu devo ser a cruz e os cravos. Passam-me o cálice e eu devo ser a cicuta. Enganam-me e eu devo ser a mentira. Incendeiam-me e eu devo ser o inferno. Devo louvar e agradecer cada instante do tempo. Meu alimento é todas as coisas. O peso preciso do universo, a humilhação, o júbilo. Devo justificar aquilo que me fere. Não importa minha ventura ou desventura. Sou o poeta. Jorge Luiz Borges trad. josely vianna baptista

Matilde Rosa Araújo

II Soneto para Cesário

Se te encontrasse, agora, na paisagem nocturna dos fantasmas da cidade, contava-te dos nossos pobres versos no teu rasto de sombra e claridade Contava-te do frio que há emmedir a distância entre asmãos e as estrelas, comlágrimas de pedra nos sapatos e umcansaço impossível de escondê-las Contava-te – sei lá! – desta rotina de embalarmos amorte nas paredes, de tecermos o destino nas valetas De uma história de luas e de esquinas, comretratos e flores damadrugada a boiarem na água das sarjetas. Dinis Machado,

adília lopes

O cheiro de Deus: Recital de poesia de Adília Lopes from Pastoral da Cultura on Vimeo .

Eu sei, mas não devia--Marina Colasanti

Eu sei, mas não devia Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos E a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ónibus porque não pode perder tempo da viajem. A comer sanduíche porque não dá p'ra almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ónibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, ac...