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o analfabeto político

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo. Bertold Brecht (1898-1956)

postulado

Eu quero uma tira de papel do meu tamanho um metro e sessenta nele um poema que grita quando alguém passa e grita em letras negras a exigir o impossível coragem cívica por exemplo essa coragem que nenhum animal possui compaixão por exemplo solidariedade em vez de rebanho fazer nossos através de actos esses conceitos Homem animal que tem coragem cívica Homem animal que conhece a compaixão Homem animal-palavra animal-conceito Animal que escreve poemas poema que pede impossíveis a quem passa urgentemente irrefutavelmente como se apregoasse “Bebe Coca-Cola” Hilde Domin [in: "Estende a mão ao milagre", antologia organizada e traduzida por Maria José Peixoto Lieberwirth, Cosmorama, 2008) ver, sobre a autora

o olhar

O teu lugar é onde olhos te olham. Tu nasces onde os olhos se encontram. Suspensa por um chamar, sempre a mesma voz, parece haver só uma com que todos chamam. Caías, mas não cais. Olhos te prendem. Tu existes porque olhos te querem, olham-te e dizem que tu existes. Hilde Domin - Nascida no ano de 1909, em Colônia, Hilde Domin começou a escrever poemas somente a partir de 1951, quando já se encontrava exilada na República Dominicana, país que a fez adoptar o sobrenome do pseudónimo, em substituição a Palm, que ganhou quando casara. Devido à distância entre os idiomas e ao facto de não ter uma boa divulgação em língua portuguesa, Domin ainda é nome de restrito prestígio . Na Alemanha, entretanto, não se pode contornar a poeta quando se fala de pós-guerra. Ao lado de Paul Celan, Rose Ausländer, Ingeborg Bachmann, entre outros, Domin se concentra, em sua obra, nos temas do exílio – a língua estrangeira, a perda da terra natal, os choques e encontros culturais. Essa mulher extraordinária e

gracias a la vida

Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado el sonido y el abecedario; Con el las palabras que pienso y declaro: Madre, amigo, hermano, y luz alumbrando La ruta del alma del que estoy amando. Gracias a la vida que me ha dado tanto. Me ha dado la marcha de mis pies cansados; Con ellos anduve ciudades y charcos, Playas y desiertos, montañas y llanos, Y la casa tuya, tu calle y tu patio. Gracias a la vida que me ha dado tanto; me dio el corazón que agita su marco cuando miro el fruto del cerebro humano, cuando miro al bueno tan lejos del malo, cuando miro el fondo te tus ojos claros. Gracias a la vida que me ha dado tanto; me ha dado la risa y me ha dado el llanto. Con ellos distingo dicha de quebranto, los dos materiales que forman mi canto; y el canto de ustedes que es el mismo canto; y el canto de todos que es mi propio canto. Gracias a la vida, que me ha dado tanto.

Alfonsina y el Mar (MERCEDES SOSA)

do futuro da poética

"É normal encontrar-se, aqui e ali, alguma ansiedade em torno da sobrevivência da poética no tempo da rede, pelo menos no modo como (culturalmente) a entendemos desde finais do século XVIII. O problema voltou a ser aflorado numa das recentes feiras do livro onde estive presente, a de Viana do Castelo. Para expiar angústias, passo a apresentar uma possível e breve cartilha em sete pontos sobre o futuro específico da ciberpoética. E por saber que o “miedo no es sonso”, como escreveu Borges em El Libro de Arena (1975), daqui a cem anos… vamos ver se não acertei em cheio: 1 – A vida da ciberpoética será cada vez baseada no provisório e num verdadeiro vaivém em oposição a uma vasta tradição que sempre encarou a poesia como inscrição definitiva (uma espécie de magistral ‘sinal dos tempos’). O destino da ciberpoética vai, pois, ser o movimento: fluir e navegar através de permanentes subtracções e adições. 2 – A autoria da ciberpoética tenderá cada vez mais a descolar de marcas individu

TO BE ALONE

TO BE ALONE «To be alone is one of life's greatest delights» D. H. Lawrence uma chávena de chá sobre a mesa um gato de barro um castiçal algumas flores conchas livros um caderno dois novelos de lã e uma revista de tricot – espólio de uma tarde à chuva nessas delícias da solidão que D H Lawrence cantou Soledade Santos (poema publicado em DiVersos 8 ,ed.Sempre-em-pé)

o que os meus olhos vêem- maria gomes

o que os meus olhos vêem, o que os teus olhos vêem, será talvez o litigo da solidão profunda, o ar, em suma, num silêncio irredutível, livre, lírico , tão longínquo, num lugar antes do tempo. maria gomes

O Poeta em Lisboa

Quatro horas da tarde. O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos. Tem febre. Arde. E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos. Segue por esta, por aquela rua sem pressa de chegar seja onde for. Pára. Continua. E olha a multidão, suavemente, com horror. Entra no café. Abre um livro fantástico, impossível. Mas não lê. Trabalha - numa música secreta, inaudível. Pede um cigarro. Fuma. Labaredas loucas saem-lhe da garganta. Da bruma espreita-o uma mulher nua, branca, branca. Fuma mais. Outra vez. E atira um braço decepado para a mesa. Não pensa no fim do mês. A noite é a sua única certeza. Sai de novo para o mundo. Fechada à chave a humanidade janta. Livre, vagabundo dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta. Sonâmbulo, magntfico segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado. Um luar terrífico vela o seu passo transtornado. Seis da madrugada. A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa. Defende-se à dentada da vida proletária, aristocrática, burguesa. Febre alta, violenta e dois

de William Carlos Williams

"A man like a city and a woman like a flower – who are in love. Two women. Three women. Innumerable women, each like a flower. But only one man – like a city.” William Carlos Williams, The Broken Span, 1941

um poema

O que não significa vai significar um dia destes. Mas significará uma coisa bastante diferente. Pensam que uma escada leva sempre a uma espécie de casa ou terraço, e são magnânimos admitindo alguma variação de formas e propósitos dentro dos termos das casas e terraços que há. Pois estão à vossa espera, senhores, casas e terraços de estranhos sistemas arquitectónicos. Há mesmo a suspeita de tratar-se de uma escada esquisita, uma escada apenas para subir. Mas dantes havia moral, dizem eles. Havia a moral para subir e ir ao terraço. Depois via-se a paisagem. E era bonito? Sim, havia metafísica, política e filosofia para ver. E para que servia ver isso? Ora, a gente ficava contente, porque entravam e saíam ideias pela cabeça. Uma espécie de piquenique mental, não? A metafísica, a política, a filosofia são matérias nobres. Sim, senhores, obrigado. Pois, e se a gente queria a casa, subia a escada e entrava na casa. Também nas paredes, a filosofia, e etc? Sim, exactamente. Olhem: não, obrigad

o que o jardineiro disse a Mrs. traill

_ E agora é tão pobre a poesia que publicam. Mas nos velhos tempos não era assim, Pois outrora foi a linguagem da dor humana, E, na língua dos anjos, a dessa causa Pela qual arderam grandes almas, e os carvalhos floresceram. Eu, que sou amigo dos amarantos, reconheço Um bálsamo nesse nome, um bálsamo para estas praias. Mas agora usam palavras difíceis para coisas simples, Para as flores silvestres, e para as flores do lago. Folha da alegria, estrela em chamas , são palavras que hoje Pouco nos tocam, embora tenham sementes em forma de asa, Se os pobres pecadores como eu falarem Com Deus que humildemente pronuncia esses nomes com amor. in "AS CANTINAS E OUTROS POEMAS DE ÁLCOOL E DO MAR", Malcom Lowry Selecção e tradução de José Agostinho Baptista

a alquimia do verbo

A mim. A história de mais uma das minhas loucuras. De há muito que me gabo de possuir todas as paisagens possíveis e que acho ridículas as celebridades da pintura e da poesia moderna. Amei pinturas idiotas, vãos de portas, bugigangas, panos de saltimbancos, estandartes, estampas baratas, literatura fora de moda, latim eclesiástico, livros eróticos sem caligrafia, romances antigos, contos de fadas, contos para crianças, velhas óperas, refrões ingénuos, ritmos simplicíssimos. Sonhei com cruzadas, com viagens de descobrimento das quais não existiam relatos, repúblicas sem histórias, guerras de religião sufocadas, revoluções de costumes, movimentos de raças e de continentes: acreditei pois em todas as magias. Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde - Determinei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, procurei inventar um verbo poético acessível, custe o que custar, a todos os sentidos. Guardei a tradução. Era acima de tudo um

jardim antigo

um fato aconteceu no silêncio das flores do jardim abandonado entre os arbustos e folhas secas aumentaram as cores a vivacidade variada libertaram não sabem a nenhum germinam grandes entre pedaços de estatuária debaixo de pedras dentro dos tanques surdos somente perdidos anjos e o cão preto aquelas aves desgarradas aquelas murtas velhas não a vêem à noite um lagarto verde entre as estrelas azuis as flores dormem as flores há muito tempo lá estavam elas dormem ROGEL SAMUEL in ROGEL SAMUEL- novos poemas

devíamos

Devíamos nascer velhos, despertos, capazes de decidir nosso destino na Terra, saber que caminho tomar desde a primeira encruzilhada e que irresponsável fosse apenas o desejo de ir mais longe. Depois, pormo-nos a caminhar, cada vez mais jovens, alcançar maduros e fortes as portas da criação, atravessá-las e entrar apaixonados na adolescência, sendo crianças quando nos nascessem os filhos. Estes seriam assim sempre mais velhos que nós, ensinando-nos a falar e embalando-nos para dormir, desapareceríamos pouco a pouco, cada vez mais pequenos, como um grãozinho de uva, de ervilha ou de trigo... Ana Blandiana (Trad. A.M.)

eu não voo

Eu não voo ando quero que me oiçam mas também não sou das rãs que coaxam António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 11, Porto, [1959]

a maior solidão

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre. Vinicius de Moraes

reflexão

Basta uma lágrima cheia De uma saudade de tudo Afonso Lopes Vieira

cada um que passa em nossa vida

Cada um que passa em nossa vida, Passa sozinho ... Porque cada pessoa é única pra nós, E nenhuma substitui a outra... Cada um que passa em nossa vida, Passa sozinho, Mas não vai só... Cada um que passa em nossa vida, Leva um pouco de nós mesmos, E nos deixa um pouco de si mesmo... Há os que levam muito, Mas não há os que não levam nada... Há os que deixam muito, Mas não há os que não deixam nada... Esta é a mais bela realidade da vida. A prova tremenda da importância de cada um, É que ninguém se aproxima do outro por acaso.... Antoine de Saint-Exupéry

Faz-me o favor

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Supor o que dirá Tua boca velada É ouvir-te já. É ouvir-te melhor Do que o dirias. O que és nao vem à flor Das caras e dos dias. Tu és melhor... muito melhor! ... Do que tu. Não digas nada. Sê Alma do corpo nu Que do espelho se vê. Mário Cesariny

No sorriso louco das mães

No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. Que balouçam. Que são puras. Gotas e candeias puras. E as mães aproximam-se soprando os dedos frios. Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões e orgãos mergulhados, e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais. Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado, vendo tudo, e queimando as imagens, alimentando as imagens, enquanto o amor é cada vez mais forte. E bate-lhes nas caras, o amor leve. O amor feroz. E as mães são cada vez mais belas. Pensam os filhos que elas levitam. Flores violentas batem nas suas pálpebras. Elas respiram ao alto e em baixo. São silenciosas. E a sua cara está no meio das gotas particulares da chuva, em volta das candeias. No contínuo escorrer dos filhos. As mães são as mais altas coisas que os filhos criam, porque se colocam na combustão dos filhos. Porque os filhos são como invasores dentes-de-

Biografia

Não pegues na colher com a mão esquerda. Não ponhas os cotovelos na mesa. Dobra bem o guardanapo. Isso, para começar. Extraia a raíz quadrada de três mil trezentos e treze. Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes? Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega. Isso, para continuar. Parece-lhe decente que um engenheiro faça verso? A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio. Se continuas com essa moça fechamos-te a porta. Isso, para viver. Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto. Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires. Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos. E descansar: morrer. Gabriel Celaya, 1911-1991

o limoeiro- Mahmud Darwish

Tínhamos atrás das grades Um limoeiro As frutas amareladas brilhavam como lâmpadas As flores eram um leque cheiroso no nosso bairro Tínhamos, atrás das grades Um limeiro. Nosso Mas, para fazer enfeites com seus galhos E perfume das suas flores O cortaram Ficamos Sem o nosso limoeiro Nossos olhos Nunca mais viram a primavera. Mahmud Darwish Biografia de Mahmud Darwish Mahmud Darwish, palestino nascido no ano de 1942. Como muitos dos poetas da resistência palestina, teve desde o princípio uma clara militância política e foi preso em Israel. Abandonou esse país no começo dos anos 70, viveu em alguns países socialistas europeus, no Egipto, e depois vários anos em Beirute, onde se transformou em um dos membros mais destacados do Centro de Pesquisas Palestinas, dirigindo a revista Shuún Filistiyya. Sua obra lírica é muito ampla e dela destacamos (*): Hojas de oliva, 1964; Enamorado de Palestina, 1966, um de seus livros mais representativos e emocionantes; El fin de la noche... es día, 1

MALEVICH

Imagem
Malevich descobriu que o branco tinha cor as várias cores do branco desde o branco cabralino das brancas casas caiadas até o branco indolor dos muros dos hospitais o branco das sepulturas brancas, das paredes duras brancas, das casas e flores brancas, que orlam o lodo de esgotos de favelas e o mais branco das velas dos lenços e dos lençóis mesmo a branca imagem branca do esvoaçar de uma garça na revelação do meu sol sobre praias do Nordeste ou a doçura brancura do açúcar no café as cortesias alturas da lua tiradentina onde o branco dessas tintas se finge de mais alvura como neves Himalaias ou branco das gravuras da minha amiga artista Lyria Palombini ou o branco daquelas saias engomadas onde passam virgens ao sol sorridente em direção das suas salas decerto paredes brancas de suas almas de escola Rogel Samuel in " Novos Poemas" de Rogel Samuel

procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu s

anjo daltónico

Tempo da infância, cinza de borralho, tempo esfumado sobre vila e rio e tumba e cal e coisas que eu não valho, cobre isso tudo em que me denuncio. Há também essa face que sumiu e o espelho triste e o rei desse baralho. Ponho as cartas na mesa. Jogo frio. Veste esse rei um manto de espantalho. Era daltônico o anjo que o coseu, e se era anjo, senhores, não se sabe, que muita coisa a um anjo se assemelha. Esses trapos azuis, olhai, sou eu. Se vós não os vedes, culpa não me cabe de andar vestido em túnica vermelha. Jorge de Lima

O Desfraldar

Uma noite, o oceano entrou em minha casa Era um velho respirando como uma antiga locomotiva Convidei-o a sentar-se junto da janela para que se recompusesse e eu lesse em sua honra alguns poemas Mas ele continuou de pé, ofegante Ofereceu-me peixes conchas e partiu De manhã examinei a minha casa. não havia telhado nem porta nem janela nem parede tudo estava partido e molhado Até eu, oh meu Deus estava partido como um vaso Já não tinha lábios para falar braços para cingir o tronco de uma mulher Do meu corpo só restava uma flor saliente, o meu coração no meio dos escombros IUSUF ABDELAZIZ Poeta Palestiniano tradução de Albano Martins

FRANKLIN JONES

Se pudesse ter vivido mais um ano, teria acabado a minha máquina voadora, tomando-me com isso um homem rico e famoso. Faz sentido, portanto, que ao artesão que adorna a minha lápide lhe tenha saído algo mais parecido com um frango. O que é a vida, no fundo, senão sair do choco para correr no quinteiro até ao dia da degola? A diferença é que o homem tem um cérebro de anjo e desde o princípio vê o machado. Edgar Lee Masters - Spoon River

Já não somos mais poetas

Já não somos mais poetas Somos corvos Já não somos mais poetas Somos corvos Já não somos mais poetas Somos corvos E nós vemos as linhas de cima telefónicas Já não somos mais poetas Somos corvos E nós vemos-te por cima dos fios de electricidade Já não somos mais poetas Somos corvos E nós vemos-te empuleirados nas antenas de televisão Já não somos mais poetas Somos corvos E vemos-te lá dos campos onde nós respigamos Assim que tu passas com o teu carro e vais pagar-te o direito de circular num carro Já não somos mais poetas Somos corvos E vemos-te entrar nas escolas nos Domingos de Maio E pisar onze papeis Para designar o chefe de uma multidão Somos corvos Não temos chefe As estações conhecem-nos Elas nunca te viram Já não somos mais poetas Somos corvos E ao que parece vivemos muito tempo, hein! Tu nunca o vais saber Preferes meter entre ti e nós um pára-choque de aplausos, de razões de ser conselheiros do Findo de Desemprego, fios, fios, fios, Preferes meter entre ti e nós livros dias e

vale a pena ler

Um poeta provinciano Os Prémios recebidos revolucionaram a vida pacata deste autor que se define como um "poeta provinciano ". Participante na Guerra Civil Espanhola , António Gamoneda garante que agora procura buscar momentos de tranquilidade no meio de todas as suas viagens e actos honoríficos. "Agora, acontece que me encapsulo para trabalhar até nos comboios", comenta. Uma destas viagens acaba por o trazer a São Roque (Andaluzia), antes de seguir para a Grécia, Itália e para alguns países Árabes. Gamoneda pesa bem as suas palavras antes de falar, controla o seu vocabulário com um ritmo lento. Todavia, a sua lucidez contraria o rosto enrrugado. Rugas provocadas por décadas de literatura e das lembranças de infância, cujo registo – sob forma de memórias – verão a luz do dia nas semanas que se seguem. « Elas estão teoricamente acabadas, mas eu conheço-me bem e sei que a qualquer momento posso não as corrigir, mas voltar a reescreve-las novamente. O texto espera pela

as quantidades de tempo

As quantidades de tempo situam as quantidades de sons. Oiço-os para lá da morte. A música eleva-se de um poço de silêncio; é lavoura de ar em tímpanos de fogo e isso entrou em mim. E agora a música é o meu pensamento António Gamoneda

Caí sobre uma mãos

Caí sobre uma mãos quando não sabia ainda que vivia nas mãos Elas passaram sobre o meu rosto e o meu coração. Senti que a noite era doce como um leite silencioso. E grande. Muito mais que a minha vida. Mãe : Eras as tuas mãos e a noite juntas. Aqui está o porquê da solidão gostar de mim. Eu não me lembro, mas está comigo. Existe, no esquecimento Encontram-se as mãos e a noite. Ás vezes, Quando a minha cabeça se debruça sobre a terra Não posso mais e está vazio o mundo. Algumas vezes, sobe o esquecimento até ao coração. Eu ajoelho-me Para poder respirar sobre as tuas mãos. Eu desço e tu escondes o meu rosto; e eu sou tão pequenino; e as tuas mãos tão grandes; e a noite vem mais uma vez, vem mais outra. Eu descanso de ser um homem, eu descanso de ser um homem. António Gamoneda

lamento de menino triste-Ronaldo Costa Fernandes

O azeite ainda se agarra às paredes do frasco depois de esvaziado. A água, leve, esvazia-se rápido, às vezes até evapora, e não deixa resíduo, nada se gruda à parede do frasco. Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria e me livra do azeite do desengano. Ronaldo Costa Fernandes (poema enviado gentilmente por Walter Moura)

antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero o esplêndido de onde emerge a sintaxe,os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",o "o" o "porém", e o "que", esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a língua entende Deus cujo filho é o verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça,infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror. Adélia Prado

nunca soube lançar o pião

Nunca soube lançar o pião como os rapazes no terreiro, entre os contentores:aprendizes de ladrões, de proxenetas, arrumadores. nunca soube lançar o pião. Nem puxar-lhe o cordel entre os dedos ou içá-lo, rodopiante, na palma a mão,acima do solo conspurcado e mudo. Lancei a minha vida, os meus anseios. e foi tudo. in " A Irresistível Voz de Ionatos" de Victor Oliveira Mateus

Grandes são os desertos

Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos. Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em vésperas de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo in

sabedoria

"O mérito verdadeiro é como um rio: quanto mais profundo, menos ruidoso é". Lord Halifax

Pedro Foyos

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Sobre o autor Pedro Foyos Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1945. Perfazendo uma carreira profissional de mais de quarenta anos como jornalista e director de publicações, se dedica também, atualmente, à literatura de ficção e de divulgação de temas das Ciências da Natureza. De entre os órgãos de informação onde trabalhou se destacam o diário República (único jornal de oposição à ditadura de Salazar) e o Diário de Notícias. Neste jornal de referência na imprensa portuguesa integrou a direção de redação, sendo responsável, nomeadamente, pela revista dominical e edições especiais. Fundou a revista Nova Imagem, da qual foi director durante seis anos, e mais tarde a coleção Grande Reportagem. Foi presidente durante uma década da Associação Portuguesa de Arte Fotográfica, tendo nesse período fundado e dirigido o Anuário Português de Fotografia. É autor dos livros O Jornal do Dia e A Vida das Imagens. Organizou, a convite da Imprensa Nacional, uma antologia histórica, em dois volumes, consagrada

CONFISSÃO A MAAT

"Honra a Ti Grande Deus, Mestre de toda Verdade! A Ti venho, meu Deus, e me ponho na Tua presença a fim de tomar consciência dos Teus decretos, Eu Te conheço e comungo Contigo e com as Tuas quarenta e duas leis que existem Contigo nesta Câmara de Maat... É em Verdade que venho comungar Contigo e Maat está presente no meu pensamento e na minha alma. Por Ti destruí a maldade. Não fiz mal à humanidade. Não oprimi os membros de minha família. Não forjei o mal em lugar da Justiça e da Verdade. Não me relacionei com homens indignos. Não pedi para ser considerado o primeiro. Não obriguei ninguém a um trabalho excessivo para mim. Não coloquei o meu nome na frente, para ser elevado às honrarias. Não privei os oprimidos dos seus bens. Não fiz nenhum ser humano passar fome. Não fiz nenhum ser humano chorar. Não infligi nenhum sofrimento a qualquer ser humano ou a animal. Não privei os templos das suas oblações. Não falseei as medidas. Não me apossei das terras de outrem. Não fraudei nenhuma

VII - A vida gira

a vida gira como tudo gira e tem cores como as do céu árvores em chamas verdes um polén que faz dormir o vento o amanhecer do lótus que perfuma a morte in " escrito na pedra"

soneto

Rudes e breves as palavras pesam mais do que as lajes ou a vida, tanto, que levantar a torre do meu canto é recriar o mundo pedra a pedra; mina obscura e insondável, quis acender-te o granito das estrelas e nestes versos repetir com elas o milagre das velhas pederneiras; mas as pedras do fogo transformei-as nas lousas cegas, áridas, da morte, o dicionário que me coube em sorte folheei-o ao rumor do sofrimento: ó palavras de ferro, ainda sonho dar-vos a leve têmpera do vento. Carlos de Oliveira in A Leve Têmpera do Vento, Quasi

Mania da Solidão

Como um jantar frugal junto à clara janela, Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu. Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam ao fim de pouco tempo em pleno campo. Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo; o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres. Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar a terra na ancha planura. As estrelas são vivas, mas não valem estas cerejas que como sozinho. Vejo o céu, mas sei que entre os tectos de ferrugem brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos. Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo. Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel. Cada coisa está isolada ante os meus sentidos, que a aceita impassível: um cicio de silêncio. Cada coisa na escuridão posso sabê-la, como sei que o meu sangue circula nas veias. A planura é água que escorre entre a erv

Você, antes e depois

Antes, era a exuberancia que te atraia Você idolatrava a exuberancia - rolava na exuberancia. Se alimentava da exuberancia - e, do alimento em você, a exuberancia, você não precisava de mais nada... A exuberancia não estava em seu coração, em seu pensamento... jazia em seu sexo, e eu me sentia feliz, enjaulada em seu sexo. Num momento em que por instantes, fugi, você dividiu nossas vidas. Hoje, estamos um diante do outro. Mas, nossas sombras, nossas almas, se sorvem mais que a exuberancia, porque agora, nem o Tempo, nem a Historia, nem existe Vida, que nos separe. clarisse de oliveira

não nos peças a palavra

[NÃO NOS PEÇAS A PALAVRA] Eugenio Montale Não nos peças a palavra que acerte cada lado de nosso ânimo informe, e com letras de fogo o aclare e resplandeça como açaflor perdido em meio de poeirento prado. Ah o homem que lá se vai seguro, dos outros e de si próprio amigo, e sua sombra descura que a canícula estampa num escalavrado muro! Não nos peças a fórmula que possa abrir mundos, e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo. Hoje apenas podemos dizer-te o que não somos, o que não queremos. (Tradução: Renato Xavier) Eugenio Montale - Non Chiederci la Parola: videoclipe no YouTube com a voz do ator Vittorio Gassman lendo o poema. Clique na seta para assistir ao clipe. [NON CHIEDERCI LA PAROLA] Non chiederci la parola che squadri da ogni lato l'animo nostro informe, e a lettere di fuoco lo dichiari e risplenda come un croco perduto in mezzo a un polveroso prato. Ah l'uomo che se ne va sicuro, agli altri ed a se stesso amico, e l'ombra sua non cura che la canicola stamp

quem pensa na casa

QUEM PENSA NA CASA Morar numa casa. Numa casa com asas. Voar lá dentro, para fora. A casa em que você mora, em que você ri e chora, em que você ama e dorme, come e brinca, lê e escreve, pensa e morre. A casa para a qual você corre no fim do dia. Na casa, teto e paredes, escada e jardim, banheiro e cozinha, quintal e copa, sala e quartos, janelas e portas. Na casa, você conversa com aqueles que ama e admira. Você faz versos. Você se veste e se despe. Você recepciona e se despede. Na casa, você anda descalço, toma remédio, toma café, troca lâmpada, lava louça, tira soneca, vê TV, xinga político, beija filhos, faz de tudo um pouco. Não há casas perfeitas. Em toda casa falta um copo, falta uma linha, um motivo a mais de segurança. Em toda casa há um fantasma, pequeno que seja, num canto, gemendo, assombrando nossa imaginação. Quem pensa na casa já está morando ali. Quem pensa na casa leva o pensamento longe demais. A casa voadora atravessa o tempo, bebe do passado, afugenta o presente, pis

vazio

A poesia fugiu do mundo. O amor fugiu do mundo — Restam somente as casas, Os bondes, os automóveis, as pessoas, Os fios telegráficos estendidos, No céu os anúncios luminosos. A poesia fugiu do mundo. O amor fugiu do mundo — Restam somente os homens, Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis. Resta a vida que é preciso viver. Resta a volúpia que é preciso matar. Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar. Augusto Frederico Schmidt alguma poesia

sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos, Sacode as aves que te levam o olhar. Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras. Porque eu cheguei e é tempo de me veres, Mesmo que os meus gestos te trespassem De solidão e tu caias em poeira, Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras E os teus olhos nunca mais possam olhar. Sophia de Mello Breyner Andressen

GERÊS- Jorge de Sousa Braga

Quando me levantei já as minhas sandálias andavam a passear lá fora na relva Esta noite até os atacadores dos sapatos floriram Jorge de Sousa Braga ( gentilmente enviado por Amélia Pais)

Desfolh(e)ar o mar...

pétala a pétala o mar desfolha o véu de espuma à areia oferece um jardim de búzios V Solteiro in A Arquitectura das Palavras

queria

Quería remontar o misterio do mar, Como um barco que o cruza, Recolhendo peixes do infinito, Como pérolas incrustadas. Brisas nas ondas brancas, Que rumoreiam um segredo azul. Mar em remoinhos, que abre a visão das marés. Luís Enrique in MI PLANETA X

poema de Hanshan

Se você quiser um lugar para descansar o corpo, A Montanha Fria é boa para uma longa preservação. Uma brisa subtil sopra no pinheiral denso; Ouvido de perto, o som é ainda mais bonito, Sob as árvores está um homem com o cabelo cinza Furiosamente lendo livros Taoístas. Por dez anos não pude voltar – Agora esqueci por qual estrada vim. Hanshan

Sacerdotisa

Sacerdotisa, tu és o Santo Graal com a Essência de Cristo. Portadora de um Deus sobre a Terra, teus olhos não têm pupila, são duas brasas numa tez de porcelana. Seus longos dedos, brancos como as penas das asas da cegonha, têm sempre as pontas unidas diante de teu peito onde encarcerado, palpita teu coração. Não podes te ajoelhar diante do Cristo que amas. porque, portadora da Sua Essência, tu és o imenso estojo em que o embalas, de um extremo a outro do Universo, incenssando a Criação com o perfume de seu Espirito e fecundando as Almas, com o Pólen de seu Renascimento Divino. Clarisse in- Clarisse de Oliveira

poema XLII

XLII pesam as pedras em meus olhos e sei que as fogueiras da noite fazem crescer o pólen do coração Maria Costa

mesa de solidão

Mortas na boca as palavras demoram A refluir aos lábios Elas esperam que o Amor as ajude Que o Amor lhes sirva De ponte Que o Amor lhes dê a conhecer A boca que as espera A ofegante boca que as espera . RAUL DE CARVALHO RAUL DE CARVALHO Poeta português, natural do Alvito. Foi colaborador das revistas Távola Redonda e Árvore e Cadernos de Poesia, que, na década de 50, conglomeravam de forma irregular, mas activa, poetas de várias sensibilidades. A obra deste poeta, onde se encontram evocações da sua infância alentejana, revela a sua ligação ao neo-realismo. A fidelidade ao humano e o estilo enumerativo e anafórico são marcas da sua poesia. Os seus títulos englobam As Sombras e as Vozes (1949), Poesia, (1955), Mesa de Solidão (1955), Parágrafos (1956), Versos - Poesia II (1958), A Aliança (1958), Talvez Infância (1968), Realidade Branca (1968), Tautologias (1968), Poemas Inactuais (1971), Duplo Olhar (1978), Um e o Mesmo Livro (

coração sem imagens

Deito fora as imagens. Sem ti, para que me servem as imagens? Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em qualquer parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica. Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve a não ser eu. Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém. Era mais difícil perder-te e, no entanto, perdi-te. Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei. Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti. E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz. Raul de Carvalho

ainda assim

toda saudade é bruma e ainda assim dói saudade é como viajar num barco que se perdeu Adelaide Amorim in "INSCRIÇÕES"

poema para a Maat

Mulher bela de coração aberto, Tua mirada é clara e perfeita. Na tua poesia quase onírica, quase etérea, Convergem todas as coisas, Rosas vermelhas como feridas. Desertos e campos em flor. Música das mais altas esferas. Mulher de uma só peça. Criatura anjo, sempre eterna. Mulher de uma cristalina sapiência. Mulher, em toda sua substância e beleza. Luis Enrique in MI PLANETA X

da Poesia

"A fala aponta sempre uma coisa, como um dedo ou aceno. Só que, se a coisa é muito importante e nova de dizer, a fala nunca chega exactamente àquilo que visava de início. O que chega pode ser até muito importante, e novo também. Mas fica ao lado da primeira coisa. E todas essas coisas mal ou bem apontadas ou agarradas – existem. É como o amor que nunca erra: só fica, quase sempre, mesmo ao lado, porque nunca há perfeita correspondência dual. Por isso é que é precisa a poesia, pois a correspondência social tem mais probabilidades de, ocasionalmemte, ficar mais perto do indigitado, ou de encontrar sucedâneos melhores: é um amor transitivo, continua sempre avante, de pessoa em pessoa." Óscar Lopes do blog TERREAR

BOUDU SALVO DAS ÁGUAS

O meu caminho é o caminho do vento Que nunca sabe de si próprio. Construir para quê Se a casa será sempre uma prisão Onde habitam três estrelas tristes E o ruído da lua E a vida e o amor Têm o tempo de um Relâmpago? Henrique Dória

contemplação da nuvem

A vida é a contemplação daquela nuvem. E o mundo uma forma de passar, que inventamos para não ver que o mundo não é o mundo, mas uma nuvem passando. E uma nuvem passando ensina-nos mais coisas que cem pássaros mil livros um milhão de homens. A vida é a contemplação daquela nuvem. E o mundo uma forma de passar, que inventamos para não ver que o mundo não é o mundo, mas uma nuvem. Passando. António Brasileiro “Poeta e pintor: é assim que Antônio Brasileiro gosta de se definir. Mas não são essas poucas palavras que melhor o definem. Nome expressivo da poesia brasileira atual, ensaísta e ficcionista, Brasileiro é também figura de destaque como agitador cultural. Mente multifacetada, o seu raio de acção inclui, além da literatura e das artes plásticas, um sólido estudo de filosofia. Com vinte e duas obras publicadas (poesia, ensaio, conto, romance, teatro), divide o resto do tempo entre o amor pelos livros e a música, a prática do ténis e o cultivo do ócio.”

não leias odes, meu filho

não leias odes, meu filho, lê antes horários: são mais exactos. desenrola as cartas marítimas antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes. o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas nas portas e marcar a fogo no peito os que digam não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu: a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara. treina-te nas pequenas traições, na mesquinha fuga quotidiana, úteis as encíclicas mas para acender o lume, e os manifestos são bons para embrulhar a manteiga e o sal dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas para assoprar-se nos pulmões do poder o pó fino e mortal, moído por aqueles que aprenderam muito e são meticulosos por ti. «Para um Livro de Leituras Escolares» Hans Magnus Ensenberger Poesia do século XX (de thomas hardy a c.v. cattaneo) Editorial Inova - 1978 Tradução: Jorge de Sena. Magnus Enzensberger (11 de novembro, 1929 em Kaufbeuren) é poeta, ensaista, tradutor e editor alemão. É também escritor sob o pseudôn

FINALMENTE

Demorou... mas agora sei que sou vidoeiro e elefante, couve-flor e cotovia, carvão, terra e borboleta, eucalipto e pantera, cebolinho e peneireiro, granito e libelinha, acácia e cavalgadura, pojo, cardo e andorinha, pedra mármore e formiga, palmeira e rinoceronte, mocho, papoila, urubu, ... até sou o horizonte! Demorou... mas agora sei que sou... que sou vento, sol e chuva e excremento, ar, montanha e mar. Sou tudo o que já acabou, tudo o que há-de começar. Agora sei o que sou, finalmente. Pobre de quem é só gente! Sérgio O.Sá In: "Diário de um Marginal" Dezembro de 2005

os mortos

os mortos vêem o mundo pelos olhos dos vivos eventualmente ouvem, com nossos ouvidos, certas sinfonias algum bater de portas, ventanias Ausentes de corpo e alma misturam o seu ao nosso riso se de fato quando vivos acharam a mesma graça Ferreira Gullar ouvir Aqui

Auto-retrato falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos. Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças. Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo. Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam. Agora eu sou tão ocaso! Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis. No meu morrer tem uma dor de árvore. Manoel de Barros

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Que sei eu do vento que, impetuoso e assertivo, nas suas franjas leva os frutos apodrecidos, os galhos dos arbustos, os nodosos ramos há muito espalhados pelo chão? Que sei eu desse furor com que adverte os barcos e confunde os portos; com que dispersa as nuvens e a tempestade agiganta no justo sítio onde o lodo se concentra e as algas se entrecruzam, para a sôfrega destruição das ondas? Que sei eu do vento tão falho que sou de alento, tão inseguro... privado de instrumentos que das coisas me limpem seu traiçoeiro parecer? Que sei eu dele, quando à noite, cansado de ser vento, completamente esgotado pelos trabalhos a que a distracção dos deuses o votou, se recolhe às furnas desta margem, com seu corpo de vento, suas mãos de argila, seu olhar a pedir fim? Dantes, quando eu era menino, escondido na gabardina de meu pai, julguei-o pela frieza que me deixava no rosto, pelos meus pés enregelados se acaso atravessava as quintas, o regueirão, o lamaçal que a inépcia da vizinhança insistia em

aniversário da morte de Dante

Aniversário da morte de Dante – no meu cabelo estrelas, rosas e centopéias Nana Naruto Haicai traduzido por Casimiro de Brito e Ban'ya Natsuishi, publicado na Revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, ano 10, número 18. ( enviado por uma Amiga )

NATURALEZA ORIGINARIA

El pequeño lago transparente de cristalinas aguas. Refleja las blancas nubes y el azul del cielo. Interrogado el lago por la pureza de sus aguas respondió: Renovándome constantemente conservo la Naturaleza Originaria. Chu-Shi Poeta Chino Dinastía Sung

poesia budista

Prefiero poemas que son pequeñas visiones budistas momentos de conciencia textos, que suben rápido a la mente saco la puntuación y llego al Nirvana Robert Gurney -St. Albans, Inglaterra- Do livro" El cuarto oscuro y otros poemas" (febrero, 2008)

omar khayam (Pérsia,1048 a 1131)

Na Primavera, gosto de me sentar na orla de um campo florido. E, quando uma bela rapariga me traz uma taça de vinho, não me importa nada a minha salvação. Se eu tivesse essa preocupação, valeria menos que um cão. Ninguém pode compreender o que é misterioso. Ninguém é capaz de ver o que ocultam as aparências. As nossas moradas são provisórias, excepto a última: a terra. Bebe vinho! Basta de palavras supérfluas. A tua vida não terá sido inútil, se tiveres enxertado no teu coração a rosa do Amor ou se tiveres procurado ouvir a voz de Alá ou ainda se tiveres empunhado a tua taça sorrindo ao prazer. Dizem-me:«Não bebas mais, Khayyam!» Eu respondo: Quando bebo, ouço o que me dizem as rosas, as túlipas e os jasmins. Escuto mesmo aquilo que não pode dizer-me a minha bem-amada. Retóricos e silenciosos sábios morreram sem terem podido entender-se sobre o ser e o não ser. Ignorantes, meus irmãos, continuemos a saborear o sumo dos cachos e deixemos esses grandes homens regalarem-se de uva-passas.

Edgar Allan de Poe

"Os que sonham de dia sabem muitas coisas que escapam aos que sonham de noite" Edgar Allan de Poe

história das palavras

As mulheres e os homens estavam espalhados pela Terra. Uns estavam maravilhados, outros tinham-se cansado. Os que estavam maravilhados abriam a boca, os que se tinham cansado também abriam a boca. Ambos abriam a boca. Houve um homem sozinho que se pôs a espreitar esta diferença - havia pessoas maravilhadas e outras que estavam cansadas. Depois ainda espreitou melhor: Todas as pessoas estavam maravilhadas, depois não sabiam aguentar-se maravilhadas e ficavam cansadas. As pessoas estavam tristes ou alegres conforme a luz para cada um - mais luz, alegres - menos luz, tristes. O homem sozinho ficou a pensar nesta diferença. Para não esquecer, fez uns sinais numa pedra. Este homem sozinho era da minha raça - era um Egípcio! Os sinais que ele gravou na pedra para medir a luz por dentro das pessoas, chamaram-se hieróglifos. Mais tarde veio outro homem sozinho que tornou estes sinais ainda mais fáceis. Fez vinte e dois sinais que bastavam para todas as combinações que há ao Sol. Este homem soz

ode a fernando pessoa

ODE A FERNANDO PESSOA Tu que tiveste o sonho de ser a voz de Portugal tu foste de verdade a voz de Portugal e não foste tu! Foste de verdade, não de feito, a voz de Portugal. De verdade e de feito só não foste tu. A Portugal, a voz vem-lhe sempre depois da idade e tu quiseste aceitar-lhe a voz com a idade e aqui erraste tu, não a tua voz de Portugal não a idade que já era hoje. Tu foste apenas o teu sonho de ser a voz de Portugal o teu sonho de ti o teu sonho dos portugueses só sonhado por ti. Tu sonhaste a continuação do sonho português somados todos os séculos de Portugal somados todos os vários sonhos portugueses tu sonhaste a decifração final do sonho de Portugal e a vida que desperta depois do sonho a vida que o sonho predisse. Tu tiveste o sonho de ser a voz de Portugal tu foste de verdade a voz de Portugal e não foste tu! Tu ficaste para depois e Portugal também. Tu levaste empunhada no teu sonho a bandeira de Portugal vertical sem pender pra nenhum lado o que não é dado pra por

BASTA!

Nas ruas envermelhadas pelo sangue de tanta gente andam vidas obrigadas a ver a morte de frente. É o sionismo em acção. Nem olha a meios, pensando que só pode ter razão se mais gente for matando. E a pobre Palestina, que foi Terra Prometida, em vez de Paz tem ruína e uma guerra fratricida. Porque quem foi perseguido em tempos que já lá vão prefere estar só, consigo, a juntar-se ao Povo Irmão! 6 de Janeiro de 2009, Sérgio O. Sá mais referências

de repente

na casa da minha infância ouço passos de anos cá dentro espreitam as janelas as árvores e um balouço a dar à corda com a tábua do assento para lá e para cá numa mingua qualquer de vento não sei olhar senão por um olhar fundo de câmara lenta sentindo o calor das sombras de hastes inseguras sentindo as árvores folheando ao tempo só o silêncio pressinto nem um cão ladra não há passagem de ninguém nem de outro bicho ou de outra gente mas há uma fotografia que se completa tão longe tão nítida na folhagem do arvoredo doce de descanso chego a mim e não dou pelo meu rosto inclinado para o passado com uma trégua com o movimento escrito com os meus olhos perdidos no balouço ainda ouço um grito um enorme grito de espanto eu ando e vagueio por aí e estou distante José Ribeiro Marto José Ribeiro Marto