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A mostrar mensagens de 2010

HOTEL TOFFOLO

E vieram dizer-nos que não havia jantar. Como se não houvesse outras fomes e outros alimentos. Como se a cidade não servisse o seu pão de nuvens. Não, hoteleiro, nosso repasto é interior, e só pretendemos a mesa. Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras. Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia. Carlos Drummond de Andrade (Brasil, 1902 – 1987) Claro Enigma (Record, 2006)

as crianças de Israel

As crianças de Israel Brincam às horas do ágape Sob o incêndio da alegria Maria Costa in " ao fundo do jardim" http://aofundodojardim.blogspot.com/

LAMENTO PELA MINHA CABANA DESTRUÍDA PELO VENTO DE OUTONO – Tu Fu

No oitavo mês, em pleno outono, o vento ruge, colérico, E leva num turbilhão as três camadas de palha da minha cabana. O colmo voa, atravessa o rio, espalha-se pela ribanceira. O que voa alto fica suspenso nos ramos da grande floresta, o que voa baixo cai vai girando cair nas ravinas. As crianças da aldeia do sul riem-se da fraqueza da minha velhice: têm a audácia de me roubar às claras: abertamente arrancam o colmo e fogem por entre os bambus. Grito até ficar com a boca seca: não adianta nada. Volto para casa, suspiro, apoiado ao meu bastão. O vento cessa bruscamente, mas as nuvens continuam negras, o céu de outono é silencioso e escurece com o vir da tarde. Os lençóis e cobertas são velhos, frios como ferro, as crianças, sensíveis, com repugnância, rasgaram-nos a pontapés. Todos os leitos do aposento são úmidos: não há um lugar seco, sinto cãibras nas pernas, não as poso entender. Aflijo-me, lamento-me, durmo um pouco, a noite é longa e úmida, como a poderei passa

exercício

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio, e vejo saírem de dentro dele as palavras que ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco com o álcool da memória, para que se transformem num licor de remorso; outras, guardo-as na cabeça para as dizer, um dia, a quem me perguntou o que significavam. Mas o silêncio de onde as palavras saíram volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro. Nuno Júdice

Grandes Portugueses- Fernando Pessoa

Serguei Iesseênin (Rússia, 1895-1925)

A Anatoli Marienhof Até logo, até logo, meu companheiro, Guardo-te no meu peito e te asseguro: O nosso afastamento passageiro É sinal de um encontro no futuro. Adeus, amigo, sem mãos nem palavras. Não faças um sobrolho pensativo. Se morrer, nesta vida, não é novo, Tampouco há novidade em estar vivo. Iessiênin Tradução do poema . Augusto de Campos gentilmente enviado por Amélia Pais

entre-vistas - Alberto Manguel

«ESTAMOS A DESTRUIR O VALOR DO ACTO INTELECTUAL» Ensaísta, escritor de ficção - mas talvez, acima de tudo, leitor. Instalou a sua magnífica biblioteca pessoal num presbitério medieval francês, onde reside. De passagem por Lisboa, Alberto Manguel falou com o Ípsilon. Ana Gerschenfeld 02.07.2010 “Os livros e a leitura sempre nortearam - e ainda norteiam - a vida de Alberto Manguel. Aprendeu a ler por volta dos três anos e nunca mais parou. Quan­do era adolescente, leu em voz alta, durante vários anos, para Jorge Luís Borges, que tinha ficado cego. Mais tarde, começou a escrever sobre li­vros, leituras e leitores - e o seu "Uma História da Leitura" (publicado em Portugal em 1999 pela Presença) tor­nou-se um best-seller mundial. Nasceu em Buenos Aires em 1948, criou-se em Israel, fez o liceu na Ar­gentina, viveu em sítios longínquos como Taiti. Nos anos 1980 mudou-se para Toronto, no Canadá, e tornou-se cidadão canadiano. De há 10 anos pa­ra cá, vive no Sul de Fr

O DESTINO DAS ROUPAS

No cesto da roupa suja de qualquer quarto do mundo uma mãe saberia reconhecê-las. Suportaram as investidas do tempo, as agressões do lixo, os estragos do primeiro amor os rasgos da primeira contenda, as nódoas da fruta, os espinhos da rosa, a rosa do amor, o vómito amargo de sábado à noite, o sangue do amigo no carro desfeito. © 2006, Rui Lage De: Revólver Ed.Quasi, V. N. Famalicão, 2006 ISBN: 989-552-221-5

o cúmplice

Crucificam-me e eu devo ser a cruz e os cravos. Passam-me o cálice e eu devo ser a cicuta. Enganam-me e eu devo ser a mentira. Incendeiam-me e eu devo ser o inferno. Devo louvar e agradecer cada instante do tempo. Meu alimento é todas as coisas. O peso preciso do universo, a humilhação, o júbilo. Devo justificar aquilo que me fere. Não importa minha ventura ou desventura. Sou o poeta. Jorge Luiz Borges trad. josely vianna baptista

Matilde Rosa Araújo

II Soneto para Cesário

Se te encontrasse, agora, na paisagem nocturna dos fantasmas da cidade, contava-te dos nossos pobres versos no teu rasto de sombra e claridade Contava-te do frio que há emmedir a distância entre asmãos e as estrelas, comlágrimas de pedra nos sapatos e umcansaço impossível de escondê-las Contava-te – sei lá! – desta rotina de embalarmos amorte nas paredes, de tecermos o destino nas valetas De uma história de luas e de esquinas, comretratos e flores damadrugada a boiarem na água das sarjetas. Dinis Machado,

adília lopes

O cheiro de Deus: Recital de poesia de Adília Lopes from Pastoral da Cultura on Vimeo .

Eu sei, mas não devia--Marina Colasanti

Eu sei, mas não devia Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos E a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ónibus porque não pode perder tempo da viajem. A comer sanduíche porque não dá p'ra almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ónibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, ac

Tentativa de Solidão

Por meus lados adormecidos, sempre atrás de uma claridade desci até olhar-me frente a frente. Escrevo as tristezas com minha velha flauta de sombras enquanto nos copos de vinho bebo meus diversos rostos. Sem chorar despojando-me de tantos estigmas mortais aguardo a alma que fugitiva vem do seu passado em busca de uma fonte adormecida para descer para a noite. Quero estar sozinho em meu grande espectro, meus olhares desertos, meus cantos doem-me porque não findam em seu próprio delírio, mal reluzo neles, mal vou escorrendo como o orvalho desce dos olhos das sombras. Quero ser meu próprio testemunho, a realidade de meu signo, mas, - que povoado imenso galopa, respira, sofre? O peito de raiz perturbado está com substâncias alheias. Vacila esta veia que entra à minha frente vinda do crepúsculo, tão vasta como o passado de fogo de uma estrela, deixa-me seus sinais de luz mas seu esconjuro não consegue que esta fronte asile também nós malignos. Ah, a alma volte a fugir com os pés gelados do

vozes de crianças

O amanhã nos meus olhos é de um cinzento triste, é uma teia de luz cansada onde recordo quando iam dormir. Ainda lhes leio naquele quarto, debaixo da lâmpada ao lado da cama, os contos com capas duras de cores brilhantes. De súbito, em alguma madrugada, ouço uma criança que me chama e incorporo-me, mas não há ninguém, só um velho que ouviu o rumor da memória, um leve fragor de ar na escuridão como se uma bala atravessasse a casa. Ao apagar a luz guardava um tesouro. Joan Margarit, Casa de Misericórdia, ed. ovni, Lisboa,2009

Empilhando Lenha

O homem costuma recolher do bosque os troncos caídos com a tempestade. Empilha-os nas traseiras da casa. De cada um recorda o que o fez cair e onde o recolheu. Nas noites frias, a contemplar as chamas, vai queimando o que resta do que ama. Joan Margarit

Agostinho da Silva - Solidão, Tolerância, Trabalho e Poesia

DIA DE CHUVA EM CASA CHINESA

A chuva fria de inverno deslizava sobre os telhados de ceramica verde O chão quente de madeira enviava mensagem de viver, não se sabe porque nem para onde Jade Vermelho pegava um vaso revestido de palha trançada e o levava para a mesa de laca preta os potes de ceramica de beber chá ela os arrumava na bandeja de porcelana e bronze o mais, era ouvir a chuva cair com seu barulho ininterrupto de cascata aprisionada, e um eco em vida aberta nos jardins dos homens clarisse de Oliveira CLARISSE DE OLIVEIRA

a Harmonia

L'harmonie fut ma mère dans la chanson des arbres et c'est parmi les fleurs que j'ai appris à aimer. *** A harmonia foi a minha mãe na canção das árvores e foi entre as flores que aprendi a amar. Friedrich Hölderlin