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A mostrar mensagens de 2008

ano novo

Virás de manto realmente novo Entre searas ardentes e mãos puras? Poderemos enfim chamar-te novo, Ano novo entre as tuas criaturas? Deceparás enfim as mãos tiranas? Será feita, enfim, nossa vontade? Eu queria acreditar, vozes humanas, Acreditar em ti, deus da verdade! Como eu queria trazer-te a este mundo (Mas onde te escondeste? Desde quando?) Ó deus livre, sem espinhos, ó fecundo Senhor do fogo alegre e não do pranto! Ó ano novo, a minha esperança é cega. Transforma em luz a nossa própria treva. Alberto de Lacerda (1928-2007)

dá-me o puro cansaço

Dá-me o puro cansaço após o amor à fresca sombra da tarde. Agora que é ido o desejo, concede-te este breve instante de paz e repousa. Toda a minha vida possui isto: uma boca a brilhar sozinha em meu peito. Mas a carne é sonho ao tocar-se nela, ao senti-la fremente em nossos lábios indefesos; a carne é já cinza, esquecimento, frio desolador que se anuncia. Porém, vê como arde a tua boca negando o vazio que sempre perto nos aguarda; vê como arde o meu peito com um resplendor que por ti jamais se apaga. "Porquê beijar teus lábios se se sabe que a morte está próxima, se se sabe que amar é esquecer a vida apenas, fechar os olhos ao sombrio presente para os abrir aos radiosos limites de um corpo?" Porquê respirar esta luz carnal frente ao curso de um poderoso rio que cruelmente nos ignora mas onde de súbito uma gota de orvalho esplende como uma lágrima nossa? Não, também eu não quero acreditar numa verdade que nos livros se lê como uma água, também eu não posso aceitar essa futura

Naufragio de la niña de tu ojo derecho

La niña de tu ojo derecho ha perdido la infancia, y todas las imágenes que ha visto se sumergen en llanuras abisales, el océano reclama a la niña de tu ojo derecho, y la hunde en su seno, diligente le quita las sandalias, quiere el agua que las huellas dejadas en la arena sean leves, que se borre de la tierra cualquier reflejo que hable de su paso. Por eso la marea arrebata a la costa los restos de su sombra, y entrega al horizonte los colores. Mezcla el océano olvido con arena, y escupe en la niña de tu ojo derecho con la saliva sagrada de los náufragos. Un blanco duelo de espuma la llama por su nombre de sombra, por un instante le hierve la memoria, tu niña se pierde entre jirones, el abismo le arrebata la infancia y las sandalias. Elena Soto de Métricas del alma Elena Soto

GRATIDÃO QUE NEM SABE A QUEM DEVE SER GRATA

Gratidão de ser por estes anos e partículas restantes. Pela amizade, que chega a confundir o amor. Pela bondade, que torna a solidão desvalida. Pela hombridade, à altura do céu. Pela beleza, que só à santidade sobrepassa. E é flagrante, perdulária, noutros renascente. Gratidão que nem sabe a quem deve ser grata. Pelas aves nutrindo os filhos de penugem e voo. Pela lentidão escrupulosa da tartaruga, igual à de Plutão. Pela leveza materna do vento transportando pólen. Pelo calor humílimo da joaninha sobre a nossa mão. E por estar na terra uma só vez, ao sol, nada pedindo, nenhum segredo, como um velho lobo-do-mar. * António Osório (n. 1933) Poeta e ensaísta, António Osório de Castro nasceu em Setúbal, a 1 de Agosto de 1933. Concluído o curso de Direito, fixou-se em Lisboa, onde se dedicou ao exercício da advocacia. Foi bastonário da Ordem dos Advogados entre 1984 e 1986, administrador da Comissão Portuguesa da Fundação Europeia da Cultura e presidente da Associação Portuguesa para o

Oración para un extranjero

VI Lluvia, somos dos extranjeros, mi nombre como el tuyo es una travesía, un deambular por puertas cerradas para siempre. La gente entra en mi sueño como por otra casa y tus breves colores se deshacen contra el olvido, pero ya lo sabemos, no hay nada que tratar con su navaja, nada que preguntar en sus regiones. Lluvia, somos dos extranjeros, nos separa una herida. © Jorge Boccanera

Monumento al mar

Monumento al mar Paz sobre la constelación cantante de las aguas Entrechocadas como los hombros de la multitud Paz en el mar a las olas de buena voluntad Paz sobre la lápida de los naufragios Paz sobre los tambores del orgullo y las pupilas tenebrosas Y si yo soy el traductor de las olas Paz también sobre mí. He aquí el molde lleno de trizaduras del destino El molde de la venganza Con sus frases iracundas despegándose de los labios He aquí el molde lleno de gracia Cuando eres dulce y estás allí hipnotizado por las estrellas He aquí la muerte inagotable desde el principio del mundo Porque un día nadie se paseará por el tiempo Nadie a lo largo del tiempo empedrado de planetas difuntos Este es el mar El mar con sus olas propias Con sus propios sentidos El mar tratando de romper sus cadenas Queriendo imitar la eternidad Queriendo ser pulmón o neblina de pájaros en pena O el jardín de los astros que pesan en el cielo Sobre las tinieblas que arrastramos O que acaso nos arrastran Cuando vuela

Infância

Sempre o mesmo desejo de voltar às praias da infância: argúcia dos dedos na areia alegria dos olhos na espuma… mas como voltar aos trilhos apagados? e como voltar às fontes incendiadas? ( ao invés deste desejo eis-me espiando o futuro que nunca vivo!) ( à memória de Anabela Mafalda, com muita dor) Em todos os ramos por onde pousaste reclinei-me de frio. Armando Artur 1962 Armando Artur João nasceu em 1962, em Alto-Molocué. Pertence à Direcção de Associação dos Escritores, de que é actualmente secretário- geral. É um dos poetas revelados como o Movimento Charrua. Livros de poesia: Espelhos dos dias (1986) o Hábito das manhãs ( 1990), Estrangeiros de nós próprios ( 1996) e os Dias em riste ( 2002) ________________________________________

Hoje não escrevo

Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos. Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário. O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para

A NOITE DO DIA DE FESTA

A NOITE DO DIA DE FESTA – Leopardi Noite sem vento, doce, clara. A lua Flutua sobre tetos e pomares, Serena, revelando ao longe, os montes. As ruas e caminhos silenciam, Minha amada. Pelos balcões, são raros Os lampiões, um sono suave invade Os aposentos, você dorme, nada Perturba o seu repouso, muito menos A chaga que me abriu dentro do peito! Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno - E à antiga natureza onipotente Que me volta à aflição – dirijo os olhos. “Para você, nem mesmo uma esperança; Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”, Ela me disse. Mas que dia magnífico! Dormem danças e jogos, mas, em sonho, Talvez para você desfilem todos De quem gostou ou aos quais agradou ( Menos eu, que nesse rol não compareço ). Mas se calculo os dias que me restam, Vejo-me aos gritos, a rolar na terra: Que vida horrível numa vida jovem! Vai pela rua o canto solitário De quem já trabalhou, passou na tasca, E volta tarde para a casa pobre. Vai-me apertando, amargo, o coração, Se penso em como

Canção de Amor da Jovem Louca

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer (Acho que te criei no interior da minha mente) Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis, Entra a galope a arbitrária escuridão: Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro. Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama, Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade. (Acho que te criei no interior de minha mente) Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno: Retiram-se os serafins e os homens de Satã: Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro. Imaginei que voltarias como prometeste Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome. (Acho que te criei no interior de minha mente) Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro: (Acho que te criei no interior de minha mente.) Syvia Plath translated by Maria Luíza Nogueira (in A REDOMA DE CRISTAL, Ed. Artenova, Brazil, 1971, p. 255)

poema de gonçalo de sousa

a mágoa atravessa os dias como a chuva miúda. por ela me construo um labirinto invisível. prova-se que não é a realidade que nos atormenta. gonçalo de sousa 2003-04-28

poema XXIX

antes do tempo da pergunta voltada para trás antes das estrelas iminentes antes das vozes caladas na chuva antes da rosa dias há para perceber as alturas antiquíssimas que viajam em vertigem maria costa in " ao fundo do jardim"

nocturno e elegia

Se perguntar por mim, traça no solo uma cruz de silêncio e fria cinza sobre o poluto nome que eu padeço. Se perguntar por mim, diz que sou morto e apodrecendo estou sob as formigas. Que sou o ramo de uma laranjeira, o simples cata-vento de uma torre. Não lhe digas jamais que choro ainda afagando o vazio de sua ausência, onde ficou a sua cega estátua impressa, sempre aguardando que regresse o corpo. Um loureiro que canta e sofre – é a carne, e eu em vão esperei à sua sombra. Já é tarde. Sou um mudo peixezinho. Se perguntar por mim, dá-lhe estes olhos, estas grises palavras, estes dedos; dá-lhe no lenço a gota do meu sangue. Diz-lhe que me perdi, que estou mudado em obscura perdiz, em falsa jóia a uma orilha de juncos olvidados: diz-lhe que eu ando do açafrão ao lírio. Diz-lhe que eu quis eternizar seus lábios, habitar o palácio de sua fronte. Navegar uma noite em seus cabelos. Que aprender quis a cor de suas pupilas e apagar-me em seu peito, suavemente, nocturnamente imerso, aletargado

o presente

El present I No hi ha veritat. Sols present. Pols feta aire. Muntanyes immòbils. Però la realitat no és visible amb els ulls de la mare. El present com a crestall cúbic lluu sols per una de les seves escates. La realitat és sols un concepte. Una ficció. Figuració de la sang. Cal•ligrama de l'ànima. Àngel Terrón(De Ternari, 1986)

dez mandamentos para escrever com estilo

Diez mandamientos para escribir con estilo .Lo que importa más es la vida: el estilo debe vivir. .El estilo debe ser apropiado a tu persona, en función de una persona determinada a la que quieres comunicar tu pensamiento. .Antes de tomar la pluma, hay que saber exactamente cómo se expresaría de viva voz lo que se tiene que decir. Escribir debe ser sólo una imitación. .El escritor está lejos de poseer todos los medios del orador. Debe, pues, inspirarse en una forma de discurso muy expresiva. Su reflejo escrito parecerá de todos modos mucho más apagado que su modelo. .La riqueza de la vida se traduce por la riqueza de los gestos. Hay que aprender a considerar todo como un gesto: la longitud y la cesura de las frases, la puntuación, las respiraciones; También la elección de las palabras, y la sucesión de los argumentos. .Cuidado con el período. Sólo tienen derecho a él aquellos que tienen la respiración muy larga hablando. Para la mayor parte, el período es tan sólo una afectación. .El es

a ovelha negra

La Oveja negra En un lejano país existió hace muchos años una Oveja negra. Fue fusilada. Un siglo después, el rebaño arrepentido le levantó una estatua ecuestre que quedó muy bien en el parque. Así, en los sucesivo, cada vez que aparecían ovejas negras eran rápidamente pasadas por las armas para que las futuras generaciones de ovejas comunes y corrientes pudieran ejercitarse también en la escultura. Augusto Monterroso. La oveja negra y demás fábulas

o mar chama...

Tacteio o insondável abismo da ternura no glacial cume dos ombros A sua sinuosa orografia lembra a textura das algas flutuando à deriva num mar em chamas in " A arquitectura das palavras" de Vítor Solteiro

Calabouço

Quem dera pudesse dissipar a sombra. A chave, não a tenho mais. Todos esses monstros, com seus corpos flamejantes, presos em jaulas de cobre, rogando às forças do abismo que os libertem. Quem dera pudesse dissipar a sombra. A chave, a perdi naquela tarde. Um dia, as luzes da fonte eram negras. Com uma rocha, vedaram a entrada da caverna. As cabeças em estacas marcavam o caminho. Quem dera pudesse dissipar a sombra. A chave esqueceu-se na fenda da cratera. Ontem não há mais e o que resta é essa noite interminável e a faca do vento gelado nas costas e os açoites dos gritos de dor Quem dera pudesse dissipar a sombra A chave, a levou o príncipe das trevas. Hoje os astros sem céu possível, nada que emane das paredes que se fecham sobre os corpos onde as almas se escondem. Adriana Versiani Ouro Preto – MG, Brasil- 1963

existe uma escritura poética?

O GRAU ZERO DA ESCRITURA* Seguido de Novos ensaios críticos Por Roland Barthes / Tradução: João Batista do Lago. EXISTE UMA ESCRITURA POÉTICA? Na época clássica, a prosa e a poesia são magnitudes, sua diferença é mensurável; não se encontram nem mais nem menos distantes que dois signos distintos, são contíguos, ou seja, encontram-se ao longo do tempo ocupando lugar de proximidade, de vizinhança de adjacência. Contudo, apesar dessa contigüidade, a prosa e a poesia apresentam diferenças de quantidade. Infere-se que a Prosa é um discurso mínimo, veículo mais econômico do pensamento, e se, ao mesmo tempo infiro que a, b, c são atributos particulares da linguagem, inúteis, porém decorativos como o metro, a rima, assim como o ritual das imagens, toda a superfície das palavras concretizará numa dupla equação de Monsieur Jourdain: Poesia = prosa + a + b + c Prosa = poesia – a – b – c Conclui-se, a partir de então, que a Poesia é [e será] sempre diferente da Prosa. Entretanto, é preciso notar q

poema

deve ter sido o amor mais puro, numa outra primavera. - assim pensei, a ouvir as ondas no seu ritmo terrestre. em tudo houve uma forma evidente, um verde, uma paisagem esdrúxula onde se ajusta o silêncio, em filigrana, ao despojado luar libidinal. mariagomes out.2008

XXVIII- maria costa

caminho para todos os lugares lágrima para todas as saudades lâmpada para toda a claridade e a isto eu chamo ' coração sem muros ' Maria Costa

soubesse eu que eras ténue!- vicente ferreira da silva

soubesse eu que eras ténue! brisa dos cinco elementos. formada no rompimento dos tecidos humanos ou em desejos momentâneos. já idos! em Março. vislumbrei-te sem halo. intacta! como a lua despida ao Outono. e aceitaste-me com um sorriso de estrelas. foi no hausto do instante, inebriado pela miríade dos sentires, que me deixei, despercebidamente, sucumbir. o tempo foi-se, exausto. e nem sequer, os teus lábios provei. Soubesse eu que eras ténue! mas não soube. e despojando-me das vestes artificiais, fui pregar às areias do vento. o voo das aves corria no fluir das lágrimas ou na força vital que pulsa nas artérias, e foi nas águas do deserto que reencontrei a dupla hélice da vida. a lembrança? deixou de estar corrompida. falhei o teu breve partir. mas sei-te ténue, sei-te minha. no profundo das sequóias vermelhas. in Comentários na face da Noite do Inatingível

levaram da casa um cofre- walter cabral de moura

levaram da casa um cofre. cofres-fortes... rio-me deles servem só para guardar valores de segunda: ouro, jóias, papéis... pois carrego comigo cá dentro e bem seguro um cofre de verdade onde guardo sentimentos. Walter Cabral de Moura

Agostinho da Silva - Europa, Japão, o Futuro e o Universo

Poesia e a dimensão erótica da vida

Platão, o filósofo grego, explica que o nome anthropos (homem) significa “aquele que contempla o que vê”. Contemplar é extrair daquilo que é visto algo que está além do objeto: encontrar um sentido. O fascínio do poema, sua sedução, reside, justamente, na possibilidade de criar e/ou encontrar esse sentido. Se, de um lado, temos o homem faminto por sentido e, do outro, há o poema que se abre ao desejo desse homem, fica patente o poder erótico da poesia. E, aqui, não cabe falar em poemas eróticos, pois não há poesia que não seja erótica. O ritual erótico que resulta no poema começa com a paixão do poeta pela palavra, pelo desejo que permeia sua relação com a linguagem. Só o poema pode revelar toda a sensualidade de um idioma. Só a Poesia possui as palavras com tamanha ânsia, a ponto de arrancá-las ao controle da sintaxe, desnudá-las da roupagem da gramática e conduzi-las, num crescendo, ao gozo inevitável: o poema. Toda poesia que mereça esta designação é erótica, no sentido de que nasce

havia na minha rua- saul dias

Havia na minha rua uma árvore triste. Quebrou-a o vento. Ficou tombada, dias e dias sem um lamento. (Assim fiquei quando partiste) Saúl Dias (1902-1983) sobre este poeta

a Palavra

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porq

sonhos sem ilusões

Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde. Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

sonetos

Seja falar, escrever, olhar sequer Sempre inaparentes somos. Nosso ente Não pode, verbo ou livro, em si conter. A alma nos fica longe infindamente. Pensamentos que dermos ou quisermos Ser alma nossa em gestos revelada Coração cerrado fica o que tivermos, De nós mesmos é sempre ignorada. Abismos de alma intransponíveis Por pensar ou manha de o parecer. Ao mais fundo de nós irredutíveis Quando ao pensar o ser queremos dizer. Sonhos de nós, as almas lucilantes, E duns pra outros sonhos doutros antes. Fernando Pessoa in poemas ingleses Trad. de José Blanc de Portugal

Sóis Interiores

árvores de luz do futuro iluminaram a via do grande plantador. o Palácio das Águas leves ainda é o enigma do vento. almas brancas, nuvens soltas. in In-finito Azul

DEVOLVAM-ME - Yan Li

Devolvam-me Devolvam-me aquela porta sem fechadura Mesmo que já não ligue a nenhum quarto, devolvam-me Devolvam-me o galo que me acordava todas as manhãs mesmo que tenha sido devorado, devolvam-me os ossos Devolvam-me o canto do pastor que soava na encosta da montanha mesmo que tenha sido gravado em cassete, devolvam-me a flauta Devolvam-me o espaço do sexo mesmo que tenha sido poluído, quero o direito à proteção do ambiente Devolvam-me a boa relação com os meus irmãos e as minhas irmãs mesmo que só tenha meio ano de vida, devolvam-me Devolvam-me todo o globo Mesmo que tenha sido dividido em mil países em cem milhões de aldeias ainda o quero, muito. *** *** *** *** *** *** *** *** *** Yan Li – poeta e pintor, nasceu em Pequim, em 1954, sendo um dos fundadores do grupo de pintores vanguardistas Estrelas, que exerceu grande influência na década de 1980. Em 1985 foi viver nos Estados Unidos, onde criou a revista literária First Line. É autor de Talvez este poema seja bom ( 1991 ), Produt

poema XXII- maria costa

há uma agitação sobre todas as coisas penso na mulher que sai de casa ainda escuro com a manhã escondida no avental e vai pela beira dos campos acordar as águas no orvalho das ervas escreve as marcas do seu passar dentro do pensar revolvendo a manhã – a libertação do fogo adormecido sob a terra - a pedra abre-se no espaço, como a mão quando se estende para cair um lugar merecido para quem já caminhou muito e só deseja ser abençoada antes de dormir maria costa

dom poético

Don Poético Tiene sueños azules pero trabaja en una oficina y usa trajes melancólicos. Su nombre es una sombra un tanto agrietada y con insomnio. Don no tiene versos tampoco Belén Vecchi, 2008

Eu não sou

Eu não sou nem cristão nem judeu, nem persa nem muçulmano. Eu não sou nem do Oriente nem do Ocidente, nem da terra nem do mar. Eu não sou nem da natureza nem dos céus envolventes; Eu não sou nem da terra nem da água, nem do ar nem do fogo; Eu não sou nem do empíreo nem da poeira, nem da existência nem da entidade. Eu não sou da Índia nem da China, nem dos Búlgaros nem de Saqsin Eu não sou nem do reino do Iraque, nem da terra de Khurasan. Eu não sou nem deste mundo nem do outro, nem do Paraíso nem do Inferno. Eu não sou nem de Adão nem de Eva, nem do Éden nem de Rizwan. O meu lugar é a ausência de lugar, o meu rasto é a ausência de rasto. Eu não sou nem corpo nem alma, porque pertenço à alma do Bem-Amado. Eu libertei-me da dualidade, eu vi que os dois mundos são um só; Eu busco o Uno, conheço o Uno, vejo o Uno, chamo o Uno. Ele é o primeiro, Ele é o último, Ele é o exterior, Ele é o interior. Eu não conheço ninguém a não ser Ele. Eu estou intoxicado pela taça do amor; os dois mundos pas

se as coisas são inatingíveis

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos se não fora A mágica presença das estrelas!" Mario Quintana

nenhuma palavra

Nenhuma palavra alcança o mundo, eu sei. Ainda assim, escrevo. Mia Couto

meu sonho familiar

Tenho este sonho: existe uma mulher Que eu não conheço e o seu carinho estende Sobre os meus males todos, que me quer Como eu a quero, enfim, que me compreende. Nem um pesar, nem uma dor sequer Sofro sem que ela o sinta: ela me entende E a grande dor que a minha fronte pende Com seu pranto, ela faz amortecer... É ela morena ou loura? Eu mesmo ignoro. Seu nome? É tão querido como o nome Das pessoas amadas que morreram. Olhos de estátua que um pesar consome! Tem sua voz o timbre almo e sonoro Das vozes caras que se emudeceram. Paul Verlaine

discurso de fulano de tal sobre seu bairro

O prédio em que moro tem cinco andares. Todas as suas janelas bocejam, replicantes, para as janelas do prédio em frente como os rostos dos que se olham no espelho. Setenta linhas de ônibus circulam em minha cidade, autorizados, cheirando a suor. Viajam viajam viajam ao coração da cidade, como se não fosse possível morrer de tédio aqui mesmo no bairro. Meu bairro é muito pequeno mas possui todos os tipos de nascimentos e mortes e tudo o que há entre vida e morte, tudo o que possui qualquer metrópole gigante. Há até crianças que passeiam maravilhosamente de disco voador e três salas de cinema. Se não fosse suficiente o tédio de casa iria a uma delas. O prédio em que moro tem cinco andares. Para a garota que saltou do prédio em frente bastaram três. Abraham Shlonski (Ucrânia, 1900-1973) (poema enviado por Adelaide Amorim )

astronomia

Pastor, que entre nuvens pastoreias, seguindo na terra os teus rebanhos de estevas e pinheiros; imagem, que atrais o hálito dos seres vivos, renascidos ou inertes; bebida, que o mar bebe, e incha a maré, levanta a onda, solta a maresia desde o eterno início; manto, que me aquece o corpo nu ou o mostra num halo de esplendor; vento, igual ao vento, mas que sopra matéria, amor, magnetos; cabelos de ouro, espargidos na terra, em parras de outono avermelhadas ou em clareiras abertas para a luz; coluna de puro brilho, que sustém os dias entre manhãs e noites; rosto, que tem o riso e o olhar ubíquos até ao fundo das raízes e até aos cumes; corola, que repete a órbita dos astros, vendo as outras corolas humílimas ante si; lâmpada, de silêncio inatingível, entre os sons mais próximos das criaturas que, em silêncio também, com ela cantam; mão decepada que afaga o mundo como se os dedos caídos fossem raios; espelho, que ao ser olhado é opaco, como uma fonte que jorra, sem imagens, para dentro a t

Mãe Ilha

Nessa manhã as garças não voaram E dos confins da luz um deus chamou. Docemente teus cílios se fecharam Sobre o olhar onde tudo começou. A terra uivou. Todas as cores mudaram O mar emudeceu. O ar parou. Escuros véus de pranto o sol taparam De azáleas lívidas a ilha se cercou. A que pélago o esquife te levava? Não ao termo. A não chorar os mortos. Teu sumo espiritual florido ensina. E se o mundo em ti principiava, No teu mistério entre astros absortos, Suavemente, ó mãe, tudo termina. Natália Correia

aprendizagens

Comienzo a perder instantes. A perderme. Una décima de segundo. Un milésimo de silencio. Nada me despoja. Todo me desnuda. Es lo infinito que regresa. Aprendo a habitar el esplendor de la sombra. Ana Emilia Lahitte

Oscar Wilde

Qualquer um pode simpatizar com o sofrimento de um amigo, mas o que exige mais classe é a natureza de simpatizar com o sucesso de seu amigo. Oscar Wilde

o mar

"O mar, às vezes parece um céu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera. De manhã desvanece-se, de tarde sonha." Raul Brandão

poema ao Homem

Frequentemente esqueço as palavras. Esqueço-Me. Esqueço-Te. E sem linguagem desapareço. Torno-me farol de imagens, imperativo que impedido de comunicar, desvenda outro reino. Gêmea de árvores e pedras mas sempre estranha que se entranha na garupa do vento. Regresso tarde ou cedo... a tempo do tempo das estações contemplar. Relembro as palavras. Relembro-Me Relembro-Te Presumo a urgência de Amar... poema de Aya

poema

Tú eliges el lugar de la herida en donde hablamos nuestro silencio Tú haces de mi vida esta ceremonia demasiado pura. Alejandra Pizarnik

o amor

"O amor é uma troca entre duas correntes de energias, dois pólos opostos mas complementares. Não é o corpo físico que inspira o amor, muitas vezes ele só intervém no fim do processo como um culminar, só vem na sequência. O que inspira o amor é invisível . Em geral, dá-se mais importância ao corpo do que aquela que ele possui realmente. Colocados lado a lado, os cadáveres de dois seres que se amaram abraçam-se? Não, mas as suas almas, que são vivas, continuam a relacionar-se. É a vida nas criaturas que provoca atracção ou repulsa. Portanto, antes de os corpos serem atraídos um para o outro, houve correntes fluídicas que os levaram a aproximar-se; os corpos apenas seguiram o movimento, bem no fim deste processo." Omraam Mikhaël Aïvanhov

Siento el crepúsculo en mis manos

Siento el crepúsculo en mis manos. Llega a través del laurel enfermo. Yo no quiero pensar ni ser amado ni ser feliz ni recordar. Sólo quiero sentir esta luz en mis manos y desconocer todos los rostros y que las canciones dejen de pesar en mi corazón y que los pájaros pasen ante mis ojos y yo no advierta que se han ido. Hay grietas y sombras en paredes blancas y pronto habrá más grietas y más sombras y finalmente no habrá paredes blancas. Es la vejez. Fluye en mis venas como agua atravesada por gemidos. Van a cesar todas las preguntas. Un sol tardío pesa en mis manos inmóviles y a mi quietud vienen a la vez suavemente, como una sola sustancia, el pensamiento y su desaparición. Es la agonía y la serenidad. Quizá soy transparente y ya estoy solo sin saberlo. En cualquier caso, ya la única sabiduría es el olvido. © Antonio Gamoneda En Arden las pérdidas Barcelona, Tusquets Editores, 2004

***

A minha boca é uma chaga O meu trabalho é silêncio Eu e a noite dormimos juntos e nunca dormimos. Carlos Edmundo de Ory POEMAS MUDADOS PARA PORTUGUÊS POR HERBERTO HELDER Carlos Edmundo de Ory , poeta e ficcionista espanhol, nasceu em Cádiz em 1923. Filho do poeta modernista Eduardo de Ory , é um dos autores vanguardistas mais singulares e revolucionários do panorama espanhol actual. Com Silvano Sernesi fundou em 1945 o «Postismo», movimento de vanguarda, e desde então participa activamente em actividades surrealistas europeias. É também ensaísta, epigramista e tradutor. A sua obra, durante muito tempo ignorada, foi valorizada a partir de 1973, sendo traduzida em diferentes línguas. Desde 1953 que viaja sucesivamente pela França, Marrocos, Perú e Bruxelas. Entre 1955 e 1967 fixou residência em Paris, radicando-se, depois, definitivamente em Amiens como bibliotecário de «la Maison de la Culture». Da sua obra destacam-se títulos como «Técnica y llanto», «La flauta prohibida», «Los sonetos

reflexões

"Temos que descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão pelo conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria." Nietzsche

Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho. Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços. Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa — eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria. Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia. Fernando Pessoa

quero escrever o borrão vermelho de sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte. Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder. Clarice Lispector

rente ao chão

O pátio é agora um quadrado de luz. Sem gatos nem sombras; apenas o silêncio das paredes, intacto. Rente ao chão, um exercício de entropia: tabuletas gastas, loiça em cacos, o balde cheio de pregos tortos, aguarelas refeitas pela chuva, baús que guardam segredos, estantes rendidas à poeira, um par de asas falsas, a túnica com rasgões e duas malas de couro manchadas pelo tempo, vazias. Ao canto, o relógio partido e os ponteiros soltos. Um deles aponta para as nuvens, lá muito ao alto. O outro aponta para nós, para aqui, para estes inumeráveis labirintos. José Mário Silva, in Nuvens & Labirintos, 2001

excerto II

Se vim para acompanhar a voz, Irei procurá-la em qualquer lugar que fale, montanha, campo raso, praça da cidade, prega do céu __ conhecer o Drama-poesia desta arte. Sentir como bate, num latido na minha mão fechada. Como, ao entardecer, solta, tantas vezes, um grito súbito: _ Poema, que me vens acompanhar, por que me abandonaste? _ Como me pede que não oiça, nem veja, mas deixe absorver , me deixe evoluir para pobre e me torne , a seu lado, uma espécie de poema sem-eu. Em silêncio e cega, deixo que me dispa da claridade penetrante, da claridade nova, da claridade sem falha, da claridade densa da claridade pensada, me torne um fragmento completo e sem resto para que passem a clorofila e a sombra da árvore. Assim, realizando eu própria o texto e acompanhando-o, constatei que a noite em breve se iria pôr, deixando-me sem dia claro às portas da cidade. Não havia percurso, apenas um decurso e vários sonhos deitados em torno de uma mesa, sem que se visse quem dormia e estava a ser sonhado. E

na página

mas o amor continua pela hora da morte... ouve, eu tenho uma lua nova, dobro-a com os dedos, na página. o mar apagou-se não sei porquê! e os sinos ousam no deserto, nada sabendo do coração ou do afago da pedra onde repousam. mariagomes 23.out.2005

poema

A poesia está guardada nas palavras-é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por esta pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado e chorei. Sou fraco para elogios. Manoel de Barros poema enviado por José di Cavalcanti Jr

na vida

Na vida, é preciso tanto seriedade quanto delírio. Se tiveres mais de um pão, vende um e compra um lírio. Li Tai Po

O Jardineiro Míope

O jardineiro míope levanta-se às cinco horas e vai dar alpista às flores a seguir rega os pássaros e enquanto vai regando vai dizendo: "Que bem cantam as minhas papoulas!" Um dia a Liga das Senhoras mais Bondosas do Mundo teve um gesto malvado e ofereceu óculos ao jardineiro míope que ajustou implacavelmente as imagens perdeu toda a poesia e viu tudo de maneira tão clara que teve a ideia escura de pedir um emprego de funcionário público enquanto a presidente da Liga da Liga mais Bondosa mais bondosa do mundo subia para o céu e se sentava à mão direita de Deus Padre que lhe enfiou uma bofetada divina que todos nós ouvimos em forma de trovão. Sidónio Muralha (nasceu em Portugal, morreu no Brasil, em Curitiba)

campo de flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza, quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro, e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor. Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos e outros acrescento aos que amor já criou. Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou. Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia e cansado de mim julgava que era o mundo um vácuo atormentado, um sistema de erros. Amanhecem de novo as antigas manhãs que não vivi jamais, pois jamais me sorriram. Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra imensa e contraída como letra no muro e só hoje presente. Deus me deu um amor porque o mereci. De tantos que já tive ou tiveram em mim, o sumo se espremeu para fazer vinho ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo. E o tempo que levou uma rosa indecisa a tirar sua cor dessas chamas extintas era o tempo mais justo. Era tempo de terra. Onde não há jardim, as f

o sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer. Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo, não mudará a vida de ninguém - mas quem é hoje capaz de salvar o mundo ou apenas mudar o sentido da vida de alguém? Escuta-me, não te demoro. É coisa pouca, como a chuvinha que vem vindo devagar. São três, quatro palavras, pouco mais. Palavras que te quero confiar, para que não se extinga o seu lume, o seu lume breve. Palavras que muito amei, que talvez ame ainda. Elas são a casa, o sal da língua. Eugénio de Andrade

visitações , ou o poema que se diz manso

De mansinho ela entrou, a minha filha. A madrugada entrava como ela, mas não tão de mansinho. Os pés descalços, de ruído menor que o do meu lápis e um riso bem maior que o dos meus versos. Sentou-se no meu colo, de mansinho. O poema invadia como ela, mas não tão mansamente, não com esta exigência tão mansinha. Como um ladrão furtivo, a minha filha roubou-me a inspiração, versos quase chegados, quase meus. E mansamente aqui adormeceu, feliz pelo seu crime. Ana Luisa Amaral

a mim filhos da viúva

viu-se de relâmpago e era negra e como se uma chave fosse uma chave foi abrindo a porta do grande palácio das buganvílias e dos loendros lá dentro sobre um pavimento de mosaicos brancos e negros duas colunas suportavam sem esforço um globo celeste e outro terrestre duas esferas romãs abertas e expostas à sua multitude era uma espada de ferro quente ondulada : flamejante a invocadora de todos os sortilégios entre colunas – onde reinava o silêncio ,soprou o verbo: «eis a minha espada, aqui não haverá espaço para a defesa porque não haverá espaço para o ataque» nisto uma bicéfala águia branca pousou sobre a coroa do trono e no tecto do palácio se escreveu num ouro muito azul: «ordo ab chao» Frederico Mira George, tempo do verão da era vulgar de 2006

o fim do mundo-João Cabral de Melo Neto

No fim do mundo melancólico os homens lêem jornais. Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol. Me deram uma maçã para lembrar a morte. Sei que as cidades telegrafam pedindo querosene. O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém escreverá desse mundo particular de doze horas. Em vez de juízo final a mim me preocupa o sonho final. in "O Engenheiro" de João Cabral de Melo Neto ( enviado por Adelaide Amorim)

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'A maior parte das pessoas realmente não nos interessa, pensei eu o tempo todo, quase todas as que nós encontramos não nos interessam, não têm para nos dar senão a sua mesquinhez das massas e a sua estupidez das massas e com isso nos aborrecem sempre e por toda a parte e naturalmente não temos por elas o mínimo interesse.' Thomas Bernhard (1931-1989) in Derrubar Árvores - uma irritação. Lisboa: Assírio&Alvim, 2007

basta-me

Basta-me Basta-me morrer nesta terra Ser nela enterrada Dissolver-me e desaparecer no seu solo Para então brotar como uma flor E ser colhida pela mão de uma criança do meu país. Basta-me permanecer Abraçada ao meu país, Como um punhado de terra, Como um ramo Como uma flor! Fadwa Tuqan - poetisa palestina enviado por José P. di Cavalcanti Jr.

queria falar do mar

queria falar do mar gostava de ter dito algo como isto: - foi o mar que me fez começar a pensar no amor, mais do que noutra coisa; quero dizer, num amor por que valha a pena morrer, num amor que consuma uma pessoa. yukio mishima

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Volta o meu filho a casa. Brisa marinha ainda nos cabelos. Há medo conquistado No seu andar e no prazer da viagem. E de salgada espuma Ainda arde em brilho a face requeimada. Tão já fruto maduro No odor bravio e ardor de estranhos sóis. O seu relance é denso De um segredo que nunca saberá De leve enevoado Ao vir da primavera ao nosso inverno. Tanto o botão se abriu Que o fito agora quase com terror E a mim mesmo proíbo A boca que outra boca já escolheu. Os meus braços rodeiam Quem para além de mim cresceu alhei Entregue a um outro mundo — Algo que é meu e tão de mim distante. STEFAN GEORGE, trad. Jorge de Sena *** Poeta e tradutor alemão, Stefan Anton George nasceu na aldeia de Büdesheim, Bingen (Alemanha), a 12 de Julho de 1868, e faleceu em Minusio, Locarno (Suiça), a 4 de Dezembro de 1933. Nascido no seio de uma família católica, aos cinco anos de idade (1873), muda-se para a cidade de Bingen, onde o pai ganha a vida como taberneiro e negociante de vinhos. É na pequena cidade do Ren

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Certa vez, perguntaram a Anaxágoras porque nascera. E ele respondeu sem vacilações: _ Para ver o sol, a lua e as estrelas.

versos tolos III

Às vezes me pergunto:__ O que vim fazer neste planeta? Não encontro resposta. Sequer sei a música daquela tarde de janeiro, num lugarejo chamado Olhos d'Água, no sertão das Gerais, onde nasci, durante um temporal, numa tarde de verão. Tantos momentos perdidos nas lembranças, tantas histórias vividas. Outras tantas, inventadas Algumas paixões de terra, tantas de árvores e estrelas. E essa saudade de luas, pedras e oceanos. __Tem uma rocha de poemas no olhar das minhas mãos. Amanhã dito o poema final. Às vezes as palavras traem o sentido, e desviam a rota do navio que conhece os perfumes do coração. Sou náufrago, com todos os barulhos, icebergs, recifes e cantigas de corais perfumados. __ O que vim fazer aqui neste planeta? Sequer conheço a canção dos Salmos! Conheço somente as palavras que levam os meus medos para os templos da paixão. Quem é vocè, mulher de prosas, versos livres e sonetos? Muito prazer! O meu nome não diz nada! Diz somente um estilhaço da poesia que me habita. Gran

no espelho dos teus lábios- maria costa

Imagem
o silêncio que agora se mira no espelho dos teus lábios trouxe-me ao mundo porta para outra vereda que me recolherá na morte - minha mãe - devo ser a luz de um sonho antepassado os dias que viajam em vertigem maria costa

união no poema

Algumas palavras nunca precisam ser ditas Alguns poemas nunca ser pronunciados Os olhos a lamber, a beijar, a sugar certos versos embebidos de puro sentir No silêncio se aprofunda o abismo entre poema e leitor Nele epicamente se ergue a ponte divina da salvação, etérea construída palmo a palmo, arquitetonicamente, sofregamente, de palavras escolhidas e colhidas ao vento para unir inabalável e por todo o sempre o coração do poeta ao coração do leitor. Laeticia Jensen Eble

a aranha e o poeta

A aranha tece a teia Eu o poema Há milênios fazendo-a perfeita Eu aprendendo Todos os pequenos bichos se enredam no poema-ceia Só rato, barata, cupim, traça(m) minha teia A aranha mata a fome na rede Meu poema tem a fome fiada nos milênios Diferenças à parte, a aranha não suporta minha indisciplina Carlos Gildemar Pontes

presença no dia

Eu fui Eu fui apenas a amiga daquele anunciado à luz das águas tão claras sua presença no dia sobre o corpo tatuado os arabescos de fera no pasto Assim veio-me ele belo e impulsivo no rastro Terêza Tenório

poesia política

Se matam os poetas, é porque temem a Poesia. Anna Ahkmátova

solidão- clarice

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Clarice Lispector

roupa no varal em tarde de vento

Uma calça azul, pendurada no varal da varanda sem cor parece querer voar parece uma pipa chinesa que meninos empinassem parece querer mostrar que em outro lugar, talvez a leste do vento sul há outras cores, outras vidas, outras idéias e amores. E eu que cheguei a pensar, no meu rústico sem-modo, que uma calça fosse apenas uma calça: uma calça – coisa só de se vestir. Walter Cabral de Moura

o infinito precisa de dois

no ondular da brisa moldam-se as curvas das dunas. frescuras diárias. breves afagos. verbos soltos. e assim escorre o relógio da vida. o infinito precisa de dois. Vicente Ferreira da Silva

Qual de nós ficou nos limites da luz

Qual de nós ficou nos limites da luz lutando entre o anjo e a beleza para que os pássaros de jade pudessem voar no dia da transfiguração? Escuta:o vento que toma com a noite a tua casa e faz sugir o abandono a solidão a cólera nestas montanhas que crescem na fronte do céu é o caminho do sol, transforma os homens em animais de esperança nas mãos do áspero escultor - e só assim cada um de nós poderá entrar no enigma que é. HENRIQUE DÓRIA-Círculo da Terra

a mais clara estrela

os olhos vão tão longe procuram-te no rasgo do espaço na mais clara estrela já na lâmina acesa do meu sono pergunto: - onde pousa a voz? de súbito desliza o branco iluminado no secreto sopro Maria Costa representada na Revista nº 13- DiVersos,Julho 2008

deito fora as imagens

Deito fora as imagens. Sem ti, para que me servem as imagens? Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em qualquer parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica. Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve a não ser eu. Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém. Era mais difícil perder-te, e, no entanto, perdi-te. Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei. Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti. E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz. Raul de Carvalho (1920-1984)

como fazer versos

"Mais uma vez, insisto muito na seguinte observação: eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta, para que escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Damos o nome de poeta justamente à pessoa que cria essas regras poéticas. (...) Na obra poética, a novidade é obrigatória. O material das palavras e dos grupos de palavras de que dispõe o poeta deve ser reelaborado. Se para a elaboração do verso se utiliza o velho entulho vocabular, ele deve estar em rigorosa correlação com a quantidade de material novo. Da qualidade e quantidade deste novo vai depender o emprego de semelhante liga. (...) A novidade, está claro, não pressupõe que se digam constantemente verdades até então desconhecidas. O iambo, o verso livre, a aliteração, a assonância, não se criam todos os dias. Pode-se trabalhar mesmo pela sua continuação, penetração e divulgação. (...) Material. As palavras. Fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias

aurora

A poesia não é voz — é uma inflexão. Dizer, diz tudo a prosa. No verso nada se acrescenta a nada, somente um jeito impalpável dá figura ao sonho de cada um, expectativa das formas por achar. No verso nasce à palavra uma verdade que não acha entre os escombros da prosa o seu caminho. E aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas: voo sem pássaro dentro. Adolfo Casais Monteiro in Voo sem Pássaro Dentro, 1954

para fazer um soneto

Em "Para fazer um soneto" descreve Carlos Pena Filho como se deve escrever um poema. Mas a receita é difícil de seguir. Pois o primeiro passo diz: "Tome um pouco de azul, se a tarde é clara". Sorver o azul da tarde, tarefa complicada de realizar à risca. Mas é aí que aparece a "palavra inicial" (dada por Deus). Depois, segure bem esta palavra (divina) com uma "atitude avara", ou seja: a partir daí passe a usar apenas o sol que bate na sua cara! Claro, o poeta é de Recife, terra do sol. Com esta palavra primeira, com o sol e com um pedaço do quintal o poema se constrói. Mas se não der certo, há uma solução de emergência. Em vez da luz clara e azul, passe a trabalhar com o tom cinzento e meio obscuro e vago, com o pó que ainda resta em nossas vidas, com os resíduos da memória, a combustão, a borralha de certas substâncias da nossa memória. Ali está o aniquilamento da nossa infância, o luto da lembrança, a destruição, a humilhação, a dor cinza dessa

preparação para a morte

A vida é um milagre. Cada flor, Com sua forma, sua cor, seu aroma, Cada flor é um milagre. Cada pássaro, Com sua plumagem, seu vôo, seu canto, Cada pássaro é um milagre. O espaço, infinito, é um milagre. O tempo, infinito, O tempo é um milagre. A memória é um milagre. Tudo é milagre. Tudo, menos a morte. – Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres. Manuel Bandeira, Estrela da Tarde, in Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993 daqui-enviado por minha Amiga Soledade- Poeta

carta-da-corcunda-ao-serralheiro

"Senhor António: O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo. O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar. O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e e