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A mostrar mensagens de junho, 2008

solidão- clarice

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Clarice Lispector

roupa no varal em tarde de vento

Uma calça azul, pendurada no varal da varanda sem cor parece querer voar parece uma pipa chinesa que meninos empinassem parece querer mostrar que em outro lugar, talvez a leste do vento sul há outras cores, outras vidas, outras idéias e amores. E eu que cheguei a pensar, no meu rústico sem-modo, que uma calça fosse apenas uma calça: uma calça – coisa só de se vestir. Walter Cabral de Moura

o infinito precisa de dois

no ondular da brisa moldam-se as curvas das dunas. frescuras diárias. breves afagos. verbos soltos. e assim escorre o relógio da vida. o infinito precisa de dois. Vicente Ferreira da Silva

Qual de nós ficou nos limites da luz

Qual de nós ficou nos limites da luz lutando entre o anjo e a beleza para que os pássaros de jade pudessem voar no dia da transfiguração? Escuta:o vento que toma com a noite a tua casa e faz sugir o abandono a solidão a cólera nestas montanhas que crescem na fronte do céu é o caminho do sol, transforma os homens em animais de esperança nas mãos do áspero escultor - e só assim cada um de nós poderá entrar no enigma que é. HENRIQUE DÓRIA-Círculo da Terra

a mais clara estrela

os olhos vão tão longe procuram-te no rasgo do espaço na mais clara estrela já na lâmina acesa do meu sono pergunto: - onde pousa a voz? de súbito desliza o branco iluminado no secreto sopro Maria Costa representada na Revista nº 13- DiVersos,Julho 2008

deito fora as imagens

Deito fora as imagens. Sem ti, para que me servem as imagens? Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em qualquer parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica. Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve a não ser eu. Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém. Era mais difícil perder-te, e, no entanto, perdi-te. Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei. Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti. E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz. Raul de Carvalho (1920-1984)

como fazer versos

"Mais uma vez, insisto muito na seguinte observação: eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta, para que escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Damos o nome de poeta justamente à pessoa que cria essas regras poéticas. (...) Na obra poética, a novidade é obrigatória. O material das palavras e dos grupos de palavras de que dispõe o poeta deve ser reelaborado. Se para a elaboração do verso se utiliza o velho entulho vocabular, ele deve estar em rigorosa correlação com a quantidade de material novo. Da qualidade e quantidade deste novo vai depender o emprego de semelhante liga. (...) A novidade, está claro, não pressupõe que se digam constantemente verdades até então desconhecidas. O iambo, o verso livre, a aliteração, a assonância, não se criam todos os dias. Pode-se trabalhar mesmo pela sua continuação, penetração e divulgação. (...) Material. As palavras. Fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias

aurora

A poesia não é voz — é uma inflexão. Dizer, diz tudo a prosa. No verso nada se acrescenta a nada, somente um jeito impalpável dá figura ao sonho de cada um, expectativa das formas por achar. No verso nasce à palavra uma verdade que não acha entre os escombros da prosa o seu caminho. E aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas: voo sem pássaro dentro. Adolfo Casais Monteiro in Voo sem Pássaro Dentro, 1954

para fazer um soneto

Em "Para fazer um soneto" descreve Carlos Pena Filho como se deve escrever um poema. Mas a receita é difícil de seguir. Pois o primeiro passo diz: "Tome um pouco de azul, se a tarde é clara". Sorver o azul da tarde, tarefa complicada de realizar à risca. Mas é aí que aparece a "palavra inicial" (dada por Deus). Depois, segure bem esta palavra (divina) com uma "atitude avara", ou seja: a partir daí passe a usar apenas o sol que bate na sua cara! Claro, o poeta é de Recife, terra do sol. Com esta palavra primeira, com o sol e com um pedaço do quintal o poema se constrói. Mas se não der certo, há uma solução de emergência. Em vez da luz clara e azul, passe a trabalhar com o tom cinzento e meio obscuro e vago, com o pó que ainda resta em nossas vidas, com os resíduos da memória, a combustão, a borralha de certas substâncias da nossa memória. Ali está o aniquilamento da nossa infância, o luto da lembrança, a destruição, a humilhação, a dor cinza dessa

preparação para a morte

A vida é um milagre. Cada flor, Com sua forma, sua cor, seu aroma, Cada flor é um milagre. Cada pássaro, Com sua plumagem, seu vôo, seu canto, Cada pássaro é um milagre. O espaço, infinito, é um milagre. O tempo, infinito, O tempo é um milagre. A memória é um milagre. Tudo é milagre. Tudo, menos a morte. – Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres. Manuel Bandeira, Estrela da Tarde, in Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993 daqui-enviado por minha Amiga Soledade- Poeta

carta-da-corcunda-ao-serralheiro

"Senhor António: O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo. O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar. O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e e

unicamente por causa da ordem decrescente

Unicamente por causa da desordem crescente Nas nossas cidades com as suas lutas de classes Alguns de nós nestes anos decidimos Não mais falar dos grandes portos, da neve nos telhados, das mulheres, Do perfume das maçãs maduras na despensa, das impressões da carne, De tudo o que faz o homem redondo e humano, mas Falar só da desordem E portanto, ser parciais, secos, enfronhados nos negócios Da política, e no árido e «indigno» vocabulário Da economia dialéctica, Para que esta terrível pesada promiscuidade Das quedas da neve (elas não são só frias, nós bem o sabemos), Da exploração, da tentação da carne e da justiça de classes, Não nos leve à aceitação deste mundo tão diverso Nem ao prazer das contradições de uma vida tão sangrenta. Bertolt Brecht

a mulher do fazendeiro

O guisado misturado, a lascívia de seu campo, sua vida local em Illinois, onde todos os acres parecem fábricas de vassouras florescentes: já faz agora dez anos que ela é seu hábito; e novamente hoje de noite ele dirá vamos, doçura e ela não lhe dirá o quanto além disso é preciso para viver, quanto mais que esta breve ponte luminosa da cama estridente ou ainda mais do que seus lentos toques em Braille, como os de um pesado deus tornado leve, esta velha pantomima do amor que ela deseja, embora isso continue a deixá-la sozinha, mais uma vez de volta a si, a mente separada da dele, vivendo a si mesma com suas próprias palavras e detestando a humidade da casa que neles permanece quando finalmente jazem em sonhos separados e a maneira como ela olha para ele que está ainda forte no envoltório rubicundo do seu sono habitual, enquanto dela os anos jovens se estiolaram na mesma cama de casal e ela o deseja aleijado ou poeta, ou ainda mais solitário, ou, às vezes, melhor, meu amado: morto Anne Se

deviam existir uns anjos

Deviam existir uns anjos que amassem, durante as madrugadas todas as mulheres tristes todas as mulheres feias as mal-amadas, as desamadas. Então só haveria na face da terra mulheres serenas e felizes, com aquele brilho nos olhos que mostram quando estão apaixonadas e são correspondidas. E este pobre mundo conheceria enfim o que é parecer-se com os jardins do Éden. Walter Cabral de Moura

a carência

Eu não sei de pássaros, não conheço a história do fogo. Mas creio que a minha solidão deveria ter asas. Alejandra Pizarnik

Coração sem Imagens

Deito fora as imagens. Sem ti, para que me servem as imagens? Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em qualquer parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica. Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e mais ninguém ouve a não ser eu. Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém. Era mais difícil perder-te, e, no entanto, perdi-te. Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei. Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti. E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz. Raul de Carvalho

A vida é um pau de fósforo

Já vi matar um homem é terrível a desolação que um corpo deixa sobre a terra uma coisa a menos para adorar quando tudo se apaga as paisagens descobrem-se perdidas irreconciliáveis entendes por isso o meu pânico nessas noites em que volto sem razão nenhuma a correr pelo pontão da madeira onde um homem foi morto arranco como os atletas ao som de um disparo seco mas sou apenas alguém que de noite grita pela casa há quem diga que a vida é um pau de fósforo escasso demais para o milagre do fogo hoje estive tão triste que ardi centenas de fósforos pela tarde fora enquanto pensava no homem que vi matar e de quem não soube nunca nada nem o nome José Tolentino Mendonça, Uma Coisa a Menos para Adorar

no espelho

No espelho o olhar desaparece às vezes desalojado no meu próprio corpo às vezes angustiado pela angústia que rola para lá e para cá como destroços na rebentação raspo com um dedo o vidro e oiço o mundo gritar. Pia Tafdrup

mensagem breve

O homem fez um livro de mil folhas ................................................................ e achou demais: folhas a mais dizer a menos. ................................................... Então refez um livro de cem folhas e achou ainda demais: ........................................... folhas demais dizer a menos. Um livro de dez folhas tão-só o homem fez ............................................................................. e mesmo assim achou demais: ............................ folhas demais dizer a menos. Escreveu então numa só folha um só dizer ............................................................................ e pôs nas mãos do vento ................... sua mensagem breve. Teresa Rita Lopes

Prece à Lua

Ó Princesa dos Astros! Ó Senhora das marés! Nos teus domínios me aventurei e no teu manto prateado me banhei. Enquanto caminhei, a tua face nova vi! E, quando naveguei, a tua face cheia vi! Agora que a casa regresso, isto é o que te peço: Que a tua luz seja crescente e a tua sombra minguante. Faz deste pedido um dos teus desígnios! in Geografia e outras Circunstâncias, Vicente Ferreira da Silva

*** (Inédito, Daniel Faria)

Precisava de falar-te ao ouvido De manter sobre a rodilha do silêncio A escrita. Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta. Da indigência. E da fadiga. Da tua sombra sobre a minha sombra E da tua casa. E do chão. (Inédito, Daniel Faria)