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Que sei eu do vento que, impetuoso e assertivo, nas suas franjas leva
os frutos apodrecidos, os galhos dos arbustos, os nodosos ramos há muito
espalhados pelo chão? Que sei eu desse furor com que adverte os barcos
e confunde os portos; com que dispersa as nuvens e a tempestade agiganta
no justo sítio onde o lodo se concentra e as algas se entrecruzam, para
a sôfrega destruição das ondas? Que sei eu do vento tão falho que sou

de alento, tão inseguro... privado de instrumentos que das coisas me
limpem seu traiçoeiro parecer? Que sei eu dele, quando à noite, cansado
de ser vento, completamente esgotado pelos trabalhos a que a distracção
dos deuses o votou, se recolhe às furnas desta margem, com seu corpo
de vento, suas mãos de argila, seu olhar a pedir fim? Dantes, quando eu era
menino, escondido na gabardina de meu pai, julguei-o pela frieza que me

deixava no rosto, pelos meus pés enregelados se acaso atravessava as quintas,
o regueirão, o lamaçal que a inépcia da vizinhança insistia em não remover.
Depois, nos meses do sufoco, o vento chegava em vergastas de fogo
aos meus pulmões ameaçando já ruína; era uma fogueira a estampar o medo
na face de minha mãe, com a estridência da sirene a devorar as ruas;
as mulheres de branco a correr e um fino tubo a raspar-me o nariz.

O vento era então o que mais tarde li em Thomas Mann: uma dor
na clavícula, outra mais abaixo, a saliva pegajosa na garganta, o sangue.
E vinha então outro vento, mas em altas e esguias garrafas, trazidas por
homens com máscaras esverdeadas, que de mim logo fugiam como de gafo
a quem sobravam dias. Que sei eu do vento se nunca nos encontrámos
verdadeiramente, mas tudo foram acidentes, resquícios de julgar ver,

refracções, imagens distorcidas, intuições à deriva, como à deriva eu
já refeito, pelas veredas abaixo? Mas agora, agora vejo-o de novo
do outro lado da vidraça, a zurzir a falésia, a beijar a praia em frente,
a vir ao varandim para me espreitar, como se nunca me tivesse
visto, porque - e pensando bem - que sabe de mim o vento?


Victor Oliveira Mateus (Lx, 09/2/6)
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in a dispersa palavra

Comentários

Maria Azenha,

agradeço-lhe a divulgação!

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